quinta-feira, setembro 15, 2005

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O chá com a menina Inês do 13º acabou por marcar mais uma passagem… a passagem desta acalmia em que vivi no último mês para mais um turbilhão de imagens, de perguntas, de cheiro a morte e ao que podia ter sido.
Sentada à mesa da cozinha e com três dos meus pequenos mais ariscos a subir-lhe à vez para o colo, a menina Inês foi-me contando como tinham corrido as suas férias: as praias que percorreu, os pores-do-sol e o mar, sempre vivo, a olhá-la… e as cidades, os barzinhos, as esplanadas. Parecia-me repousada, mas não feliz. E não a ouvi mencionar ninguém, nenhuma companhia em especial, pais, irmãos, amigos… Acabei por lhe perguntar porque vivia sozinha.
- “Sabe, professora, aqui fico mais perto da revista. Como sei que estou lá num instante, se for necessário, resisto à tentação de trazer trabalho para casa. Posso descansar, olhar por mim…” mas os seus olhos fugiam, pela bancada, pelos armários, pela janela. Sabia que não era só isso, mas não a quis forçar.
- “A menina sabe que pode contar comigo, não sabe? Foi sempre tão simpática com esta velhota que pode estar à vontade, no que precisar…”
Sei que entendeu o que quis dizer, e acabámos o chá em silêncio.
Mostrei-lhe as últimas novidades do Zé do Telhado, o gato preto e corpulento que domina lá nas traseiras: tinha afiado as unhas num dos cadeirões da sala… e agora sentava-se nele, como rei no trono!
Despedimo-nos quando o sol começava a cair no horizonte, mas, por desígnio do destino, não fechei a porta, depois de a acompanhar ao elevador. Ai, ando a ficar com a memória num farrapo!
Tinha bastante que fazer, em casa. Além de limpar os despojos do Zé do Telhado (tinha bolinhas de linhas e cotão por toda a sala), ainda havia a marquise para limpar, e a areia dos bichanos para mudar.
Quando dei por mim, já tinha anoitecido. Fui buscar as latas para os pequenos, mas o Zé do Telhado tinha desaparecido…
Porta entreaberta… bem, estava visto que tinha ido dar uma volta das dele. Mas desassossegava-me que ele não estivesse em casa à hora de jantar, são perrices minhas, que hei-de fazer?
Saí para o corredor e fui chamando… “bichano, bichano”, e ouvia-o miar, um miar aflitivo, talvez estivesse preso no elevador ou nalgum dos andares… Fui descendo as escadas e ouvia-o mais próximo, até que reparei que a porta do 11º frente estava encostada… e o miar vinha de lá.
“Ora, ora, Fernandinha… quem é que morava no 11º?? Tu e a tua cabeça… E agora parece mal, entrar assim, de rompante, pela casa dos outros adentro, sem chamar”.
Bati ao de leve na porta e fui chamando “Ó da casa…”, mas ninguém me respondeu. Entrei, passei o corredor, ouvia o Zé a miar na cozinha.
E lá estava ela. A vizinha, ainda moça, estava caída no chão. Na mesa, uma caneca de chá que derramava o seu conteúdo para o chão e meia dúzia de frascos de comprimidos. Cheirava intensamente a frutos vermelhos, e eu senti o meu estômago vazio revirar, pela situação, pelo chá de frutos vermelhos que eu própria tomara, horas atrás.
Virei-lhe a face para cima, mas estava fria, fria demais para eu pensar sequer que estivesse viva. Gritei de horror e de lembrança, mais mortes à minha volta… parecia um castigo divino. Tentei manter o sangue frio, afinal, mesmo não havendo nada a fazer por ela, era preciso resolver aquela situação. Procurei um telefone, estava na mesinha do corredor, e liguei para o 112. Só consegui explicar como encontrara a moça e balbuciei a morada, “mas ela está morta, morta…”.
Não me lembro de mais nada, para além dos bombeiros a entrar de rompante, dos vizinhos que se juntaram… e daquele jovem estudante de Medicina que chegou ainda antes deles, alertado pelos meus gritos, e que me tentou acalmar até alguém se lembrar de me obrigar a beber um pouco de leite e a ir descansar.
Agora o ar está mais pesado… e circula por aí um tal de Inspector, que toma a liberdade de passar dia e noite a procurar provas e a interrogar inquilinos. Eu, que fui a primeira, tratei de lhe abrir os olhos e explicar que, fosse qual fosse o motivo pelo qual a D. Marília (afinal era este o nome dela…) se suicidara, não havia culpados naquele prédio…

“Ah Zé do Telhado… queres vir comigo ao jardim? Preciso de ar fresco…”.
Entro no elevador, agora acompanhada de um miar em tons de festa.

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