terça-feira, maio 23, 2006

Afonso Vilhena

Subi as escadas lentamente, como quem absorve as paredes, o tecto, todos os passos. Cheguei ao meu andar sem ter visto ninguém. Desfiz as malas e sentei-me, contemplativo, junto à janela. Defronte, duas árvores tentam sobreviver na selva urbana, rasgando a calçada e erguendo-se, imponentes. Se fechar os olhos sinto a rugosidade dos ramos, o aroma fresco das folhas. Sempre gostei de sentir o mundo para me sentir a mim próprio. Vim para esta casa definitivamente. Nunca consegui estar muito tempo no mesmo local. Sempre senti o apelo do desconhecido e sempre segui os meus impulsos. Não que isso tenha mudado, mas quero um lugar que envelheça comigo, quero ser amigo daquilo que me rodeia sem estar a partir. Quero reencontrar-me. Escrevi durante toda a minha vida sobre aquilo que devemos ser, sobre o mundo, sobre o que está para além do táctil e do visível. Fui famoso. Os livros de Afonso Vilhena encheram as prateleiras das livrarias e a minha conta do banco. Peguei no dinheiro e construí um centro com um jardim. Centro de conhecimento da vida, do que não se sabe. Do oculto. Agora vou lá falar de vez em quando, na reunião de grupo geral. Tive uma mulher, mas nunca casei. Ela partilhou a minha cama, a mesa, a casa, mas nunca a minha alma. Não compreendia este meu fascínio pela vida. Acabou cedo. Passei a ser amante da natureza e da própria existência enquanto real e enquanto inatingível. Ainda o sou, aos 55 anos. Ainda tenho em mim uma juventude que espero nunca perder.
Abri os olhos. Há muita coisa a fazer para que esta casa se torne o meu lar. Quero colocar naquela parede um espelho, de forma a ter reflectida dentro do quarto a beleza do céu e das árvores. A minha sala precisa de flores, fetos e violetas, para ganhar cor e vida. Desempacotei os livros e comecei a dispô-los na estante da sala. Depois, liguei a aparelhagem e Bach encheu o ar de forma harmoniosa e perfeita.
Só nessa altura me lembrei que me esquecera de comprar cigarros – o meu único vício. Há algum tempo que ando a tentar deixar de fumar, mas acabo sempre por não resistir. Calcei os sapatos e desci as escadas. À porta do prédio estava uma senhora bem-parecida, mais ou menos da minha idade. Cumprimentei-a cordialmente, mas fiquei admirado com a forma como olhou para mim, com um misto de desconfiança e surpresa. Não tenho ar de bandido, mas talvez o meu 1.90 m e o meu cabelo branco apanhado em rabo-de-cavalo a tenha colocado de sobreaviso – afinal de contas sou um estranho para os meus vizinhos e sim, posso parecer um pouco excêntrico.
Fui até ao quiosque mais próximo e comprei um maço de Cohiba. Voltei para casa, acendi um cigarro e deixei a melodia de Bach tomar conta de mim.

1 comentário:

C. F. disse...

Só agora te tomei como conhecido, e só me apetece descobrir mais...
Gosto da forma como defines as palavras.

Carla Rodrigues
(palavrasindefinidas.blogspot.com)