segunda-feira, fevereiro 13, 2012

Escuridão

Como é possível viver uma existência moral e de compaixão quando se está plenamente consciente do sangue, do horror inerente à vida, quando se encontra a escuridão, não só à sua volta, mas dentro de si mesmo...?
Acabei de entrar em casa, e olho para as minhas mãos... a tremerem e cheias de sangue...
Vou à casa de banho, lavo as mãos e fico a abservar o sangue a escorrer para o ralo até desaparecer... sangue que não é meu...
O que é que eu fiz?
Limpo as mãos e apago todas a luzes da casa. Deito-me no sofá, a olhar para o tecto e a tentar recordar os últimos acontecimentos daquela noite... e na completa escuridão, recordo o trágico episódio que iria mudar a minha vida para sempre...

terça-feira, junho 01, 2010

INCOMPATIBILIDADES

Voltei. Cansada de tantas voltar dar por esse mundo fora. Conhecer novos povos e novos costumes foi divertido enquanto foi novidade. À medida que o tempo foi passando e íamos passando de uma a outra Comunidade, cada uma mais no fim do mundo do que a outra, comecei a ter saudades da minha civilização tal como eu a conhecia. O processo de sedução por parte do Afonso repetia-se em cada Comunidade onde era aceite. Procurava locais pouco acessíveis de onde tivesse ouvido falar de rituais religiosos curiosos - geralmente eram um misto de rituais católicos e pagãos. Chegávamos como turistas e ficávamos por tempo indeterminado. Os dias passavam, lentamente, num misto de excitação e curiosidade por parte dos habitantes locais e de nós próprios. Prestávamos pequenos serviços, trocávamos conhecimentos acabando por ser aceites pelos chefes locais. Aos poucos, o Afonso, iniciava-se nos rituais tribais, coisa com que nunca me sentia confortável. Acabava por me recusar a participar e, então, partíamos. Tentei compreender aquela necessidade mística do Afonso mas acabei por não conseguir. Achei que já não valia a pena tentar mais e parti sozinha. Assim, aqui estou de volta ao meu mundo que tão bem conheço.

marisa

terça-feira, dezembro 09, 2008

DE VOLTA AO LAR

Bateram à porta suavemente. Ouviu mas, estava tão embrenhada no seu trabalho que, fez que não ouviu. Há algum tempo que preparava aquela proposta para apresentar no departamento de estudos arqueológicos da Câmara Municipal. Suspeitava de que, perto do lago, no parque do fim da rua existiam vestígios romanos muito interessantes. Falara no assunto ao seu mentor da Universidade e este incentivara-a a preparar um estudo prévio. Andava empenhada nisso. A campainha... deu um pulo no banco. Alguém tocava à sua porta. Levantou-se de mau humor a perguntar-se sobre quem seria àquela hora. Abriu. O Jorge, de mão levantada, preparava-se para bater novamente
- Desculpa Margarida... pensei que não estavas - Baixou-se, um pouco para a beijar no rosto mas ela agarrou-se-lhe ao pescoço e beijou-o na boca enquanto o puxava para dentro. Ele não se fez rogado e tentou apagar aquela paixão que o consumia.

Os corpos suados e as roupas espalhadas pelo chão a caminho do quarto eram o testemunho de um amor que tinha sido adiado mas que o tempo não tinha conseguido matar.
- Tantas saudades do teu corpo, do cheiro do teu cabelo...
- Deixa-te de coisas!... tens algumas explicações para me dar... Não se pode desaparecer e voltar de repente, assim sem mais nem menos...
- Tentei voltar para casa por causa da minha filha. Tentei a sério... queria, mesmo, que resultasse. Pareceu-me mais fácil desaparecer. Achei que, ficando com raiva de mim, me pudesses esquecer e seguir com a tua vida em frente...
- Não tinhas o direito de pensar por mim nem no que seria melhor ou pior...
- Pois... desculpa... O tempo passou e as coisas em casa pioraram mais e mais... acabei por perceber que nos estávamos a destruir e a acabar com qualquer resto de respeito que tivéssemos um pelo outro e do qual necessitávamos para criar a nossa filha. Por isso resolvi sair de casa. Há algum tempo que vivo num pequeno hotel perto daqui. Tenho-te visto e pensado naquilo que tínhamos...
- Queres voltar para casa?
- Posso? - e os olhos riam-se-lhe.


Margarida

sábado, novembro 15, 2008

BAHIA E ORIXÁS

Levantei-me. Estava furiosa. Dei meia dúzia de voltas pelo pequeno jardim. Passei por casa da Margarida e bati à porta.
- Calma! Onde é o fogo?!
- Desculpa...bati com muita força?
-Xiiii!... Que é que se passa? Já vi que estás a precisar de um dos meus chás de frutos vermelhos...
Segui-a até à cozinha sentando-me num dos bancos altos - Palerma... maluco... convencido... idiota...mentiroso...covarde...
- A quem é que se referem todos esses mimos?
- Ao asno do Afonso.
- Que é que ele te fez?
- Nada.
- Nada?!- Nunca me contaste o que se passou no Brasil... partiram os dois tão felizes para voltares sozinha e infeliz.
- Nunca te contei porque queria esquecer... Os primeiros tempos foram maravilhosos. Salvador é uma cidade muito bonita e a Bahia não lhe fica a dever nada. As praias, quase desertas, da costa do cacau, de Dendê, dos Coqueiros, dos Descobrimentos, as imensas pequenas ilhas da Baía de Todos os Santos, as cachoeiras da chapada Diamantina, Lençóis... e a cidade de S. Salvador da Bahia?! E o pôr-do-sol junto ao Forte?! Tudo tão bonito, tão perfeito... Passado algum tempo começámos a frequentar o terreiro das mães de santo. O Afonso sentia-se fascinado pela mistura do cristão e do pagão, das cerimónias brancas realizadas pela noite povoada de orixás. A principio íamos os dois mas, como eu sou um bocado descrente e as cerimónias, para mim, não passavam de folclore, o Afonso começou a sentir-se pouco à vontade com a minha presença. Achei melhor deixar de o acompanhar nessa parte do seu mundo. É verdade que nunca me pediu que o fizesse mas também nunca insistiu para que o acompanhasse. Pareceu-me, até, ficar grato quando lhe comuniquei que não voltaria com ele aos rituais. Chegava altas horas e, não raramente, quando eu me estava a levantar para uma qualquer excursão. Deixou de ir comigo. Andava cansado. Necessitava de dormir durante o dia. Certa vez, em que voltei ao apartamento porque a excursão tinha sido cancelada por o mar estar com ondulação não apropriada à pequena embarcação que nos iria levar até ao Morro de S. Paulo, encontrei-o a dormir com duas jovens. Acordou estremunhado quando me sentiu entrar dizendo que não era aquilo que eu estava a pensar. Fiz as malas e voltei nesse mesmo dia para Portugal.

Marisa

quarta-feira, novembro 12, 2008

O JARDIM

Continuava deitada no meu balancim aproveitando os últimos raios de sol do entardecer. Os olhos fechados e o pensamento divagando para longe. Assustei-me quando o cão rosnou baixinho
- Incomodo? - Abri os olhos. O Afonso, na minha frente, fixava-me - Posso?
- Claro. Tens aí uma cadeira.
- Fizeste um belo trabalho aqui?
- Fiz?! Como é que sabes que fui eu?
- Foi a D. Margarida que me disse quando tentou converter-me a usurário da tua caixa de compostagem.
- A melhor embaixadora da caixa! - ri-me - Convenceu quase todos os habitantes do prédio a contribuírem com os restos das suas cozinhas. Tudo o que cresce aqui, neste jardim, é fruto da minha agricultura biológica. Nada de adubos químicos ou pesticidas.
- Para que são estes canteiros no centro?
- Para as plantas que cresceram demasiado, dentro das casas e, das quais as pessoas se queiram desfazer.
- Boa ideia!... O teu cão continua a rosnar-me... desde aquele dia em que nos embrulhou no hall... (para sempre)
- Que disseste?
- Nada - levantou-se ficando muito próximo. De repente pensei que me ia beijar mas... deu meia volta e saiu.

segunda-feira, novembro 10, 2008

AMIGOS

Desci as escadas vinda, mais uma vez, de casa do Mário. Passei à minha porta e ouvi o cão ladrar mas segui caminho. Apetecia-me um café a sério ( o Mário continuava a servir café de cafeteira). Não fiquei muito tempo. Sentia-me inquieta. Há algum tempo que andava assim... Voltei a casa, peguei numa garrafa de água e voltei a sair com o cão atrás. Fui até ao jardim das traseiras e estendi-me no balancim. Estava calor. Fechei os olhos... Desde que o Mário se mudara para o prédio havíamo-nos tornados inseparáveis. Passávamos horas a conversar. Aos poucos fomos descobrindo que, apesar da diferença de idades, tínhamos imensas coisas em comum. Éramos amigos embora, por vezes, tenhamos tido a tentação de ir mais longe. Havia algo que me impedia de prosseguir. Custava-lhe entender(acho que a mim também). Talvez tivesse medo de perder aquela amizade, que ao encetar um outro caminho esse não tivesse retorno. Sabia que não queria perder aquele amigo, isso, eu sabia...

quarta-feira, agosto 13, 2008

Primeira noite no prédio

O meu nome é Pedro e sou o novo vizinho do último andar.
Acabei de me mudar. A noite está calma e a lua em fase crescente. Daqui a três noites será lua cheia...
Da janela do quarto consigo vislumbrar a sua pálida cor e sinto a suave brisa da noite a acariciar-me o rosto. Fecho os olhos e peço á lua, minha eterna companheira, que me acompanhe nas noites mais escuras desta nova fase da minha vida... mesmo quando estiver em fase de lua nova, pois sei que estará lá... como sempre esteve desde o primeiro dia da minha vida...
A trama da minha vida é como a de um livro absurdo, onde o que devia estar no princípio acontece depois. E esse livro é meu e não fui eu que o escrevi, já estava escrito: simplesmente cumpri-o página a página, sem dizer nada. Sonho escrever a última, pelo menos de um só fôlego, pela própria mão, mas os sonhos sonhos são, e às vezes nem isso...