sábado, setembro 24, 2005

Ao telefone - Rita (3ºdto)

-Sim? Ana! Está tudo bem?
-...
-A vida vai correndo numa normalidade aparente.
Para grande estranheza minha as coisas aqui em casa nem parecem diferentes, as sessões de leitura, com o João, continuam, ele bebe café... eu sinto o aroma! Ontem encontrei-me com o Mário, - sabes aquele de Medicina?- na pastelaria aqui perto do prédio. Enquanto tomavamos um chã de menta perguntei-lhe se não seria giro criarmos uma noite de serão...um genero de sarau literário ou de pura e simplesmente conversa. O miúdo (não consigo parar de o tratar assim) até achou engraçada a ideia, mas focou o problema da disponibilidade e de facto até tem um certa razão...mas sinto que há pessoas aqui no prédio que precisam bem mais do que um "bom dia!" no elevador...
- ...
- Adorava que alguém me ensinasse tricot, sempre tive curiosidade para aprender, mas nunca tive tempo, agora tenho dias a fio a olhar para as paredes!!!
Ainda ontem fui até à portaria, vê lá, falar com a D.Margarida, melhor dizendo, fui dar duas de treta, porque o tédio incomoda...e fiquei foi a brincar com a miúda- a filha- tem uns olhos lindos, grandes e brilhantes...uma ternura.
A portaria é um bom emprego, ve-se entrar toda a gente.
-...
- Estou curiosa é em relação ao novo vizinho, o Pedro e à Luana...aquilo tem coisa(mas já sou eu a fazer filmes!) - verdade seja dita, seu fosse porteira estava tudo tramado com a cusquice (ehehe)!
-...
-Se fosse só isso!! Imagina que uma das minhas vizinahs se suicidou!!
Fiquei muito sensibilizada com o suícidio da D.Marilia do 11º, e tive tanta pena da professora, foi ela que a encontrou. Vê lá, uma mulher que vive sozinha com os gatos, vai dar de caras com um corpo!!!
-...
-Sim, acho que o inspector ainda anda por aqui, talvez se descubra o motivo...mas pela lentidão do caso do porteiro, duvido que até se volte a falar nisto!!
Espera um minuto estão a tocar à porta!
...
- Tou? Olha vou desligar é o home da pizza..
-...
-Que queres? tenho fome!!!

sábado, setembro 17, 2005

Tempos de adaptação...

Tenho aproveitado estes últimos dias para sair por aí, conhecer as redondezas. Ainda me faz um bocadinho de confusão ver raparigas de mini-saia, pares de namorados a beijarem-se abertamente em público.. Mas enfim, estou cada vez mais habituada!!! Começo até a questionar a minha fé, Ala... ele não permitiria que a mulher seja tratada como é no Islão!... Enfim... pensamentos!!

Ontem quando vinha a entrar em casa, cruzei-me com o rapaz que mora ao meu lado. Perguntou-me polidamente como me chamava, disse-lhe o meu nome e creio que ficou um pouco espantado. Tenho-me vestido como uma ocidental (usando saia, porque ainda me parece um pouco errado usar calças, não sei.. já nem sei o que acho certo ou errado) e como tenho a pele clara, deve ter pensado que eu era daqui. Não estou certa disso. Cumprimentou-me com dois beijinhos na cara (algo impensável na Índia) mas não me retraí, sei que não é por mal!!!
- Então e a Mohini é de onde? - perguntou ele.
- Sou indiana, mas já estou em Portugal há uns meses, podes tratar-me por tu, devemos ter a mesma idade.
- Queres entrar para comer qualquer coisa? Moro aqui ao lado e agora fiz um intervalo nos estudos! Estudo Medicina.
Fiquei assustada!! Sozinha para casa dele???
- Gostava de ser médica, os médicos são muito bons e ajudam muita gente... mas não tenho estudos para isso. E obrigada, mas já estava a ir para casa. Talvez noutro dia.
Ele olhou para mim um pouco desapontado, depois sorriu-me outra vez com aquele sorriso maldito... Virei-lhe as costas e entrei em casa tão rápida como uma flecha...

Agora parece-me uma atitude idiota. Aqui no ocidente é normal as pessoas estarem juntas sem os pais a observar e sem que seja preciso casar... Ele deve ter ficado a pensar lindas coisas de mim!!!...

Cruzei-me também com a Senhora Margarida, a porteira aqui do prédio. Sorriu-me e disse-me abertamente que eu era muito bonita. Quem me dera que as pessoas não vissem aquilo que sou!!!.. Às vezes ainda tenho tanto medo!!!
Com o tempo espero conseguir ultrapassar isto, espero conseguir amigos!!

Continuo à procura de emprego!

sexta-feira, setembro 16, 2005

A minha solidao

Estendo-me no sofá e fico em silencio a pensar na minha conversa
com a Professora e por mais que eu queira afastar estes pensamen-
tos eles povoam a minha cabeça de tempos em tempos.
Sinto-me só, tal como a Professora pressentiu na nossa conversa...
Fugi para este predio, consegui o ultimo andar (tenho fascinação por
ultimos andares) e pensei que iria esquecer tudo, arrancar do peito a
dor de ter perdido o meu amor!
Já lá vao 4 anos que o Miguel morreu, era meu marido, morreu de
num acidente de automóvel e a partir dessa altura nao consegui mais
viver sequer na mesma cidade
Parti e isolei-me aqui, sem amigos, sem ninguem que saiba o que se
passou e vivo somente para o trabalho.
Preencho os meus dias absorvida pelas reportagens, pelos textos na
redacção e ninguem sabe o que se passa dentro de mim, dentro
deste apartamento, quando estou sozinha. Nao consigo esquecer, nao
consigo ser feliz, a tristeza persegue-me...
Saio de casa e sem saber como, ou ate sei, o carro leva-me ate a
beira mar em busca de algum conforto, o mar sempre foi o meu refugio
quando estou atormentada com algo.
Entro no mar, vestida e sinto a agua fria a trespassar-me os ossos e
isso faz-me acordar deste pesadelo!
Saio em direcção a areia, caio de joelhos e choro perdidamente...
lagrimas salgadas que escorrem pelo meu rosto...
Começa a escurecer e devo voltar para casa, levanto-me e dirigo-me
para o caminho que me leva onde deixei o carro estacionado.
Quando entro no predio, com o cabelo com areia e o rosto conturbado
quero esgueirar-me para o apartamento sem que ninguem me veja,
mas o elevador pára no 10º e entra o Mario; ele diz boa noite, eu
respondo baixando a cabeça e virando-me de lado, mal chega ao 13º
saio rapidamente pronunciando um ate logo apressado!
Vou para o duche e deixo-me la estar ate as minhas lagrimas se
confundirem com a agua que escorre por mim, como se hoje fosse
possível limpar toda a tristeza do meu ser.

quinta-feira, setembro 15, 2005

...

O chá com a menina Inês do 13º acabou por marcar mais uma passagem… a passagem desta acalmia em que vivi no último mês para mais um turbilhão de imagens, de perguntas, de cheiro a morte e ao que podia ter sido.
Sentada à mesa da cozinha e com três dos meus pequenos mais ariscos a subir-lhe à vez para o colo, a menina Inês foi-me contando como tinham corrido as suas férias: as praias que percorreu, os pores-do-sol e o mar, sempre vivo, a olhá-la… e as cidades, os barzinhos, as esplanadas. Parecia-me repousada, mas não feliz. E não a ouvi mencionar ninguém, nenhuma companhia em especial, pais, irmãos, amigos… Acabei por lhe perguntar porque vivia sozinha.
- “Sabe, professora, aqui fico mais perto da revista. Como sei que estou lá num instante, se for necessário, resisto à tentação de trazer trabalho para casa. Posso descansar, olhar por mim…” mas os seus olhos fugiam, pela bancada, pelos armários, pela janela. Sabia que não era só isso, mas não a quis forçar.
- “A menina sabe que pode contar comigo, não sabe? Foi sempre tão simpática com esta velhota que pode estar à vontade, no que precisar…”
Sei que entendeu o que quis dizer, e acabámos o chá em silêncio.
Mostrei-lhe as últimas novidades do Zé do Telhado, o gato preto e corpulento que domina lá nas traseiras: tinha afiado as unhas num dos cadeirões da sala… e agora sentava-se nele, como rei no trono!
Despedimo-nos quando o sol começava a cair no horizonte, mas, por desígnio do destino, não fechei a porta, depois de a acompanhar ao elevador. Ai, ando a ficar com a memória num farrapo!
Tinha bastante que fazer, em casa. Além de limpar os despojos do Zé do Telhado (tinha bolinhas de linhas e cotão por toda a sala), ainda havia a marquise para limpar, e a areia dos bichanos para mudar.
Quando dei por mim, já tinha anoitecido. Fui buscar as latas para os pequenos, mas o Zé do Telhado tinha desaparecido…
Porta entreaberta… bem, estava visto que tinha ido dar uma volta das dele. Mas desassossegava-me que ele não estivesse em casa à hora de jantar, são perrices minhas, que hei-de fazer?
Saí para o corredor e fui chamando… “bichano, bichano”, e ouvia-o miar, um miar aflitivo, talvez estivesse preso no elevador ou nalgum dos andares… Fui descendo as escadas e ouvia-o mais próximo, até que reparei que a porta do 11º frente estava encostada… e o miar vinha de lá.
“Ora, ora, Fernandinha… quem é que morava no 11º?? Tu e a tua cabeça… E agora parece mal, entrar assim, de rompante, pela casa dos outros adentro, sem chamar”.
Bati ao de leve na porta e fui chamando “Ó da casa…”, mas ninguém me respondeu. Entrei, passei o corredor, ouvia o Zé a miar na cozinha.
E lá estava ela. A vizinha, ainda moça, estava caída no chão. Na mesa, uma caneca de chá que derramava o seu conteúdo para o chão e meia dúzia de frascos de comprimidos. Cheirava intensamente a frutos vermelhos, e eu senti o meu estômago vazio revirar, pela situação, pelo chá de frutos vermelhos que eu própria tomara, horas atrás.
Virei-lhe a face para cima, mas estava fria, fria demais para eu pensar sequer que estivesse viva. Gritei de horror e de lembrança, mais mortes à minha volta… parecia um castigo divino. Tentei manter o sangue frio, afinal, mesmo não havendo nada a fazer por ela, era preciso resolver aquela situação. Procurei um telefone, estava na mesinha do corredor, e liguei para o 112. Só consegui explicar como encontrara a moça e balbuciei a morada, “mas ela está morta, morta…”.
Não me lembro de mais nada, para além dos bombeiros a entrar de rompante, dos vizinhos que se juntaram… e daquele jovem estudante de Medicina que chegou ainda antes deles, alertado pelos meus gritos, e que me tentou acalmar até alguém se lembrar de me obrigar a beber um pouco de leite e a ir descansar.
Agora o ar está mais pesado… e circula por aí um tal de Inspector, que toma a liberdade de passar dia e noite a procurar provas e a interrogar inquilinos. Eu, que fui a primeira, tratei de lhe abrir os olhos e explicar que, fosse qual fosse o motivo pelo qual a D. Marília (afinal era este o nome dela…) se suicidara, não havia culpados naquele prédio…

“Ah Zé do Telhado… queres vir comigo ao jardim? Preciso de ar fresco…”.
Entro no elevador, agora acompanhada de um miar em tons de festa.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Rita/João (3ºdto)

João

A Rita saiu de casa. Uns dias afastados foi tempo suficiente para me aperceber que realmente esta não é vida para mim, nem para ela...
Entretanto ela já voltou, consegui falar como um adulto...soube ouvir e calei o que tinha que calr, admiti erros e apontei falhas. Tentei fazer um acordo em relação ao futuro...mas é muito incerto. Não suportei ve-la chorar e chorei com ela. Lamentos pela perda do "nós", calma pela conquista que cada um de nós consegui ter: valorização de nós mesmos.
Ela desfaz o saco que levou... eu mudo de quarto!

Aos meus olhos ela será sempre a pessoa que mais amo na vida...eu disse-lhe isso, ela fingiu que acreditou.

Rita

Cheguei a casa.
Encontrei o João postrado junto do sofá. Por momentos estive só a vê-lo, não muitos...Olhau para mim e sorriu!
Pensei"Raios! Ainda tem lata para me sorrir?!" Mas sorriu por me viu bem, de cara lavada...
A conversa que tivemos pos-me triste, eu não sabia que tudo tinha um fim, há coisas que deveriam ser para sempre. Ele chorou comigo, acredito que lamente tudo isto, acredito que gosta muito de mim, acredito que finalmente entendeu que somos amigos, só amigos.
Enquanto eu desfazia as malas ele "mudava-se" para o quarto ao lado.
O João consegue ter piada mesmo nas situações mais chatas, disse-me ele :" já viste, parece que voltamos aos tempos de faculdade, só que agora não temos o Esteves lá em casa!!" .
Eu ri-me...

Antes me ter ido embora encontrei-me com o vizinho novo. A D.Margarida disse-me que é um homem atraente, mas que deve ter algum problema. Se é atraente não sei, nem reparei muito nele, cumprimentei-o e troquei duas palavras...a única coisa que reparei foi que fixou os olhos na minha barriga por uns segundos...o elevador parou eu saí...

Nortadas e outras coisas

Enquanto esta nortada não cai, tenho-me dado ao triste luxo de ficar em terra uns tempos. Parar, pensar, respirar, materializar-me de pés assentes em alguma coisa de sólido. Nem que seja só o taco de madeira comprido desta casa vazia.

Tenho andado a observar... Como aqui em casa pouco mais há do que o estritamente necessário na cozinha, meia dúzia de âncoras enferrujadas, um ou outro arpão torcido, um monte de velas de pano rijo que me servem de cama, sofá e o que mais for preciso, vou olhando pela janela escancarada ou pela porta entreaberta (o que será que aconteceu à fechadura? Há mais de seis meseas que a porta fica aberta... pois, um dia devia pensar nisso, agora não).

Ao olhar, olho mesmo, observo. Aquela senhora, a tal da porteira ou lá o que é, não me lembro do nome... é engraçado como toda a gente vive a vida com ela. Toda a gente faz e desfaz da vida dela, seja no elevador, à porta de casa ou na escada. E não penso nisto com qualquer sentido perjurativo, acho engraçado saber mais dela pela boca de outros do que por ela mesmo. Verdade se diga que também não sou de grandes conversas...

É engraçado como há pessoas que vivem mais nos outros do que por elas próprias. Sei mais dela pelo que os vizinhos contam do que pela sua presença real neste prédio.

A presença real... ou a não-presença real. Será assim que vou acabar? Uma miragem no pensamento muito vago de alguém. Dirão um dia lembram-se daquela figura que andava sempre embarcada? Talvez nunca venham a lembrar-se de mim pelo que viram ou pelo que ouviram ou pelo que deixei ou pisei na Terra. Dizem que nem sequer sabia quem era.

E quem sou, na verdade? Não me conheço Pai nem Mãe, o princípio de tudo, não me conheço ligações, não me conheço objectos. Vivo como fui feita, num só mergulho vertiginioso a muitas milhares de anos luz de profundidade... Não há rasto de mim, nem uma pegada na areia, que a areia é varrida pelo vento e pelo mar a cada momento. Uma nuvem passageira, ou chove ou foge, mas some sempre!

domingo, setembro 11, 2005

Ernesto Saraiva e o Espelho

Parte#1

Digo "Com licença, posso passar". E ela torna-se radiosa num rompante matinal. Ela é assim. Bela somente por palavras e sentenças reduzidas. "Com licença, deixe-me passar". E ela responde-me numa voz levianamente embaraçada. "Faz favor, sr Ernesto. Está à vontade". E é ela. É ela que tem conhecimento do meu nome. Ela num plural feminino e puro. E Mulher gutural e enorme no meu cérebro já preenchido com tantos pormenores dela mesma. E cada. Pequeno. Pormenor. Cada um. Tem a sua importância. Até o som. Da voz que responde. À minha própria. Ao meu toque. À minha entrada triunfal. Por dentro. Bem sei onde.

Parte#2

Um bar e uma mulher. E finalmente transportei para aqui uma mulher que partilha comigo as partes comuns deste mesmo edifício. A porta de entrada. As escadas. O elevador. Até a luz. Mas os nossos espaços intímos são só nossos. E ela que por horas também irrompeu por gemidos e prazer na minha própria cama. A Mulher indeterminável e abstracta tornou-se concreta. Foi uma delas. Uma das que me rodeiam por aqui. Mar sozinha e sofrida com um medo vísceral só por captar-me directamente nos meus olhos. Vitória inocente e jovem que me observa da janela transposta pelo olhar dela excitado como o fantasma de uma realidade minha já vivida há mais de trinta anos. Maresia inconstante e sonhadora que vagueia nas ondas onde nunca se perde e que me seduz com os seus cabelos feitos de algas verdes e enfeitados por brilhos resultantes das gotículas salgadas. E Luana que se tornou para mim mulher determinada e concreta e que se refugia na sensualidade tristeza de nome duplo enrolando-se dentro de si mesma.

Parte#3

Espero por ti. No elevador. E mar e eu jogamos. Jogamos jogos de crianças-adultos. De quem não quer largar o olhar um do outro. Não quero ceder. Não queres ceder. Ficamos assim os dois. E por momentos ainda penso que vou ganhar. E aplico um golpe baixo. Observo-a de alto a baixo com atitude devoradora. Mar fica embaraçada. Mas não cede. Na realidade não fico desgostoso por isso. Se fosse fácil não apreciaria o jogo. Não apreciaria desta forma as rosetas de cor escarlate que se formam nas feições dela. E a minha viagem está quase a terminar. E ninguém cede. E Mar não cede. É uma grande adversária. Saio. Ela fica sozinha. E eu com um gostinho de desafio na boca.

Parte#4

Quando era novo. Novo não. Quando era muito jovem. É melhor dizê-lo assim. Encontrei-me já com aquele olhar dela. Em mim. E apetecia-me nem sequer fazer o que normalmente faço. Encontro nela. Vitória. Aquilo que fui. Vejo-a e nem sequer sou capaz de convidá-la para um café na minha casa. "Boa tarde. Quer passar logo por lá?" Não ía funcionar. Ela ía ficar assustada. E não me servia de nada tentar acalmá-la dizendo-lhe "Tu és jovem. Eu também o fui. Fiquemos assim os dois." E há anos que procurava um olhar como o dela. Um olhar daqueles que se enrola aos nossos pés quanto menos esperamos. E consegue subir pelo corpo acima até chegar ao cérebro sem qualquer aviso. O tal que provoca calafrios. O dela faz isso. E quero mais. Desejo mais. Mas simultaneamente preferia ficar assim. Não há toque. Nem deve haver. Só ela. Assim mesmo ela própria. Só preciso disso na minha vida. E uma coisa é a vontade. Outra é a necessidade de concretização. Quero-a mesmo. Mas não posso fazer nada. Vitória pura não mo permite. Tem o olhar que a protege.

Parte#5

Maresia é já mulher. Mulher dela mesma. Ninguém a agarra. Ninguém a sente. Só ela o faz. Pelos outros. Por ela. Com a intensidade da sétima onda. A mais forte. Por fenómeno inexplicável. Maresia faz-me sentir. Maresia atrai-me. Como raramente fui atraído. Com fios de água que não se subtraiem à atmosfera mas que fogem inconscientes do corpo dela. Quero entrar em ti Maresia. E Maresia não promete. Mas o que vem dela diz-me que pode cumprir.

Parte#6

Luana. O meu amor acabou. E Desculpa. Mas já deves conhecer bem os homens. Os que são como eu. Desculpa por algo que já esperavas. Nada de expectativas creio bem entendê-lo. Porque nada se constrói perante acções que já possuo em mim completamente mecanizadas. São bases pouco sólidas Luana. E tu sabes que não precisas desculpar-me. Sabias que ía ser assim. Preenchi-te por momentos espaços permanentemente vazios. Os teus. Só tens a agradecer-me. Mas não venhas bater nunca à minha porta. Provavelmente não estarei cá.

Parte#7

Olho para o meu espelho. Revejo um homem velho.

Parte#8

O meu filho morreu. Acidente de automóvel. Morte rápida e indolor. Invejo-o. E lá se foram 26 anos de imbecilidade pelo cano. Ele sempre com aquela arrogância típica de um jovem. Rezava eu que ele chegasse a velho e pensasse "Sou igual a ele. Desprezo-me". Mas o filho da puta foi-se antes disso. Com aquela sensação de que era melhor do que eu. O idiota. Nunca o hei-de perdoar por isso.

Parte#9

Olho para o meu espelho. Revejo um homem quebrado.


Mohini, a indiana do 10ºDireito

Ainda nem acredito que estou viva, depois de tudo o que passei. Devo a minha vida à Dra. Beatriz, médica sem fronteiras, que me ajudou a fugir da Índia!


Não sei bem quantos anos tenho, mas nos meus novos documentos diz que nasci a 25 de Março de 1985. 25 de Março foi o dia em que renasci. O dia em que a Dra. me encontrou. Dizem que a beleza é uma maldição. A minha mãe sempre disse isso. O meu nome, Mohini, é o nome da Deusa da Beleza (uma Deusa indiana). Nasci com a pele clara, uma qualidade muito apreciada no Oriente, os meus olhos são de um verde água e tenho o corpo esguio. Não sabia o que era a beleza, não sabia que a minha beleza podia acabar com a minha vida! Lembro-me muitas vezes do meu pai amaldiçoar a minha mãe, por me ter dado este nome. A minha mãe sempre me deu banho com leite de cocô, para manter a pele branca. Nunca me deixou apanhar sol. Passava os dias fechada em casa, fazendo tarefas domésticas simples, que não me estragassem a pele. As outras tarefas ficavam para as minhas irmãs. Sou de uma casta baixa, mas a minha beleza, dizia a minha mãe, ia-me proporcionar um casamento com um homem de uma casta superior e eu ia ser muito feliz e ter tudo o que nem ela nem as minhas irmãs iam alguma vez ter! A minha mãe sempre me escondeu, com medo que algum homem me roubasse. Nunca olhei ninguém nos olhos, porque a minha mãe me dizia que os meus olhos enfeitiçavam os homens. Comecei a usar véu antes mesmo da puberdade para tapar os meus longos cabelos negros. Nunca me queixei de nada, sempre fui submissa. Na minha terra as raparigas têm que obedecer aos pais. Desobedecer mancha o nome da família!Há pouco mais de um ano, houve uma epidemia na minha aldeia e todas as minhas irmãs adoeceram. Foi a primeira vez que saí de casa! O meu irmão mais velho, acompanhou-me ao mercado da aldeia para comprar farinha e açúcar. A minha curiosidade era tanta que não resisti a olhar à minha volta e ver o mundo! Pensei que fosse tudo como a minha casa, mas estava enganada! Olhava curiosa para tudo e num momento, os meus olhos recairam nos olhos de um rapaz. Baixei institivamente os olhos, mas aqueles segundos foram suficientes. Apaixonei-me, era o rapaz mais bonito que já vira!!! Lakshman era o seu nome. Voltei para casa, pensava nele dia e noite. As minhas irmãs melhoraram e nunca mais voltei a sair de casa. Mas ele descobriu a minha casa, e atirava-me pedrinhas para a janela, para falar com ele. Sentia qualquer coisa de diferente em mim, não queria recusar a presença dele! Não sabia nada de amor, não sabia nada de nada! Ele disse-me que queria casar comigo! Pediu-me para sair de casa e encontrar-me com ele na casa abandonada que havia atrás da minha. Consegui sair e fui ter com ele. Ele começou a tocar-me, e quando dei por mim, senti uma dor aguda e começo a ver sangue molhar-me o sari. Fujo a correr para casa, envergonhada, sem saber o que se tinha passado. O tempo passa, e a menstruação deixa de aparecer, não liguei, porque não sabia nada. Mas a minha mãe percebeu o que tinha acontecido. Passou-se tudo tão rápido! As minhas irmãs saíram todas para o mercado com a minha mãe. Ficou apenas o meu pai e o meu irmão. Vejo o meu irmão aproximar-se com um bidão de gasolina e perguntei-lhe docilmente se precisava de ajuda. Nesse mesmo instante, regou-me com aquele líquido frio. Comecei a ficar com medo e gritei pela minha mãe e pelas minhas irmãs. O meu pai acendeu um fósforo e atirou-o para os meus pés. Gritei e consegui fugir das chamas. Tinha os pés em fogo mas consegui correr. Corri até não aguentar mais.


Acordei num hospital. Tinha uma senhora de calças debruçada sobre mim. Fiquei aflita! Ela ia morrer!! Uma mulher não pode usar calças!!! Iam querer matá-la!! Ela acalmou-me e falou-me docemente, chamava-se Beatriz. Encontrara-me numa vala à beira da estrada. Contou-me que tinha perdido o meu bebé. Eu nem sabia que estava grávida! Nunca soube essas coisas! Passaram-se meses até que ela conseguisse documentos para mim e licença para ir com ela para Portugal. Não conseguia imaginar onde seria tal aldeia! Nunca tinha ouvido falar! Mas nesses meses ela falou-me de Portugal e do mundo, da cultura ocidental, ensinou-me português, ensinou-me a ler e escrever, falou-me dos costumes, explicou-me o que me tinha acontecido e ao bebé, falou-me de tantas coisas novas que eu achava que ela estava louca! Mas ao fim de algum tempo a minha aldeia parecia-me um pesadelo passado. Cheguei a Portugal e fui viver em casa da Dra., onde pude adaptar-me a este país tão diferente do meu. Já cá estou há muitos meses e já não imagino a minha vida de outro modo. Não consigo usar calças e ainda me é estranho andar sem véu, porque os homens e as mulheres olham-me nos olhos! Já fui abordada devido à minha beleza inusitada, mas é algo a que me estou a habituar.A Dra. conseguiu arranjar-me um subsidio e ando à procura de emprego. É estranho que as mulheres trabalhem ao pé dos homens. Mas também me estou a habituar a isso. Aqui as mulheres são iguais aos homens. Aqui não queimam mulheres por estarem grávidas, aqui não há mortes silenciosas! Aqui as mulheres estudam e eu quero estudar!A Dra. encontrou este apartamento para mim e agora moro no 10º direito, nunca pensei que o Homem conseguisse construir tão alto. Aqui sinto-me próxima dos deuses. Espero conseguir levar a minha vida aqui! Estou cada vez mais habituada às maneiras abertas das pessoas ocidentais.A Dra. disse-me que o prédio era como uma grande casa de família, espero encontrar aqui amigos e ajuda nesta adaptação diária.Quando cheguei estava um rapaz (talvez da minha idade) a entrar, pegou nas minhas malas e ajudou-me, mora no mesmo andar que eu. Assenti timidamente e sorri, com os olhos baixos. Ele sorriu com o mesmo sorriso de Lakshman. Acho que a minha mãe tem razão, a beleza é uma maldição!

sábado, setembro 10, 2005

O Esperado Regresso

Fecho o livro e reordeno os apontamentos de Bioquímica. Faltam poucos dias para o exame. Está a ser mais difícil do que eu pensava. Só espero que não tenha sido um erro deixar esta cadeira para Setembro. Estou cansado… Felizmente já acabei a fisioterapia à perna! Já não podia com aquilo!
Levanto-me da cadeira e vou até à janela. Quando é que a Liliana chega de férias?... Sinto-me a corroer por dentro de saudades…
Choveu de manhã, mas agora parece que o tempo está melhor (ou pior, tendo em conta o ano de seca em que estamos). Olho para o relógio: 17 horas. Dá para fazer um intervalo no estudo e ir ver a Rita e o João. Ainda não soube notícias do bebé desde que cheguei.
Saio de casa e entro no elevador. Carrego no botão do 3º andar e espero que o elevador desça, olhando para o tecto e pensando em como a Rita e o João devem estar felizes. O elevador pára. No mostrador electrónico brilha o número 5 a vermelho. Olho desconfiadamente para a porta que se abre. Entra um homem que deve estar na casa dos 30 anos. Relativamente bem arranjado e com aspecto insuspeito.
— Boa tarde! — Digo eu, continuando a observar o meu companheiro de elevador.
— B’ tarde… — Responde ele de forma quase inaudível.
Vejo-lhe um brilho no olhar que me faz desconfiar um pouco. Estudei em Psicologia Médica que o olhar brilhante denuncia um alcoólico.
Não tenho tempo para o continuar a observar, pois o elevador pára no 3º andar. Saio do elevador, despedindo-me do homem, e toco à porta do casal. Nada. Toco outra vez… Não estão… Fico uns momentos parados a pensar no que vou fazer…
Resolvo sair para o jardim que fica aqui perto do prédio. Pode ser que encontre a velha professora cá do prédio. Simpatizo com ela e com os seus gatinhos.
Desço no elevador e chego à porta de saída do prédio. Saio e olho para os dois lados. Nesse momento, uma Renault Espace estaciona no lugar mesmo em frente ao prédio. Abre-se uma porta e o meu coração dá um salto. A Liliana corre na minha direcção e atira-se aos meus braços para me beijar. De olhos fechados, deixo-me absorver pela intensidade do momento. O mundo à minha volta desapareceu… Eu e a Liliana… A Liliana e eu… Nada mais existe… A minha existência entrou num remoinho de felicidade exponencial partilhada com a única pessoa que existe para além de mim.
Até que me lembro de onde estou e me separo devagarinho da Liliana… Por cima do ombro dela, vejo o pai que olha sub-repticiamente para nós.
Pisco o olho à Liliana e dirijo-me ao pai dela. Cumprimento-o respeitosamente com um aperto de mão e dirijo-me para junto da mala do carro de onde a Madalena e a mãe estão a tirar os sacos de viagem. Cumprimento-as e pego no maior saco que encontro. Tento pegar noutro com a outra mão, mas a mãe da Liliana impede-me de o fazer. Sorrio, reclamando que assim fico desequilibrado. Avanço para a porta do prédio e passo pela pequena Joana que sorri ao ver-me passar. Meto o saco no elevador e travo a porta com um saco que a Madalena trouxe. Vou buscar mais dois sacos e, depois de duas viagens para o 2º andar, a Liliana segreda-me ao ouvido:
— Daqui a meia hora no teu apartamento, ok?
Sorrio meio surpreendido com a determinação dela e aceno que sim com a cabeça. Despeço-me dos pais dela e da Madalena e, com um largo sorriso, volto a entrar no elevador rumo ao 10º andar.

sexta-feira, setembro 09, 2005

Luana e Pedro: Copos no 5º andar

Nem sei o que me passou pela cabeça para convidar o novo vizinho para tomar um copo aqui em casa, mas ele parecia tão triste… Dei uma arrumadela rápida na sala e, quando estava a pensar se devia ou não ligar a aparelhagem, ele tocou à campainha.
Mandei-o entrar e sentar-se. Trazia consigo uma garrafa que devia ter custado um balúrdio. Servi-me do pretexto de ir preparar as bebidas para o observar através do espelho do bar. Era um homem alto e elegante, de pele levemente morena, lábios perfeitamente delineados, grandes olhos cinzentos e cabelo cor de azeviche, com um corte bem desenhado à frente e mais comprido atrás. Aparentava uns 30 anos, não mais, e vestia camisa branca e fato cinzento-escuro que reconheci ser de marca. Tão atraente… porque estará tão triste?
- Aqui tem a sua bebida, Pedro.
- Obrigado. Mora aqui há muito tempo?
- Não. Na verdade, mudei-me há cerca de uma semana e ainda não conheço toda a gente.
- Mora mesmo sozinha ou… os seus pais saíram?
- Moro sozinha. Não tenho família.
- Já somos dois – e ficou ainda mais triste.
Descobri que queria saber tudo sobre ele. Fomos bebendo e conversando. O álcool desinibia-me e permitia-me fazer perguntas, e ele parecia ansioso por desabafar. Contou-me que trabalha num dos ramos “altos” ligados à construção civil – o que explica a garrafa e o fato –, tem 34 anos e é casado mas encontra-se em fase de separação. A mulher não conseguira lidar com certas situações e abandonara-o na fase em que ele mais precisava dela.
- Mas teve de haver um motivo para isso, não acha, Pedro?
- Sim, claro que houve, e o único culpado fui eu.
- Traiu-a?
- Sim, mas não da maneira que pensa – Ele começou a falar cada vez mais depressa, como se cuspisse as palavras, como se cuspisse a sua própria alma – Eu traí a minha mulher quando abandonei os meus princípios, quando quebrei os votos de casamento, sabe, o amor, o respeito, o apoio, o estar presente na alegria e na tristeza, etc, etc. Falhei… falhei redondamente e só percebi quando bati no fundo do poço, porque quando ela esperava por mim de madrugada e quando eu chegava me implorava que parasse eu mentia; quando ela chorava e me implorava atenção eu escondia-me por trás do trabalho, porque… – começou a soluçar – foda-se... eu dei-lhe tudo, tudo! Dinheiro, casa, carro, piscina, empregada, mas… está a ver… eu não lhe dei dignidade! Que tipo de moral ou de vida digna pode ter e oferecer um homem que… que usa o álcool para se sentir melhor, para se sentir vivo… não pode, não… nunca! E ela disse-me tantas vezes e eu nunca a ouvi! Jogo, bebida… um círculo e eu no meio, e agora perdi. Perdi tudo, porque ela já não acredita que eu queria recomeçar. E agora acho que é impossível recomeçar. Mais vale ficar na merda de vez.
Abracei-o instintivamente. Achei que as lágrimas eram verdadeiras e não apenas fruto das bebidas. Quando dei por mim, tinha também eu deixado escapar duas lágrimas. Acendi um cigarro. Ele tinha-se recomposto e pedia-me desculpas
- porque eu não devia entrar assim na sua casa para falar sobre mim e ter este comportamento, Luana. É jovem e provavelmente pensa que sou um idiota e que estes problemas não existem.
- … Não existem? Ah, Pedro, era tão bom! Sabe, eu acho que a vida nos dá segundas oportunidades. Devemos levantar a cabeça e seguir em frente. Desistir é perder. Se tem consciência de que o álcool é um problema, pare de beber. Basta força de vontade. Venha cá!
Dei-lhe a mão e levei-o à janela do meu quarto, de onde se consegue a vista mais bonita. Apontei para o céu.
- Está a ver a Lua? O céu, as estrelas? Este é um pedaço do mundo, do qual você e eu fazemos parte. Pode estar na merda, mas se ainda pode desfrutar desta visão, então o mundo não se fechou para si. Viva-o. Sinta-o.
- É assim que encara a vida?
- Tento – respondi baixinho.
-Já amou alguém com tanta intensidade que lhe parecesse que a vida sem essa pessoa não fazia sentido?
Virei as costas – Eu não acredito no amor.
- Como é que uma rapariga nova e bonita não acredita no amor?
Ele tinha confiado em mim. Porque é que eu não havia de fazer o mesmo?
- Eu amei, Pedro. Ele foi o meu primeiro amor, o meu primeiro homem. Eu tinha 16 anos e ele 23. Mas acabou tudo.
- Porquê?
- Ele ensinou-me muitas coisas, fez-me crescer de muitas maneiras, mas nem todas boas. Levava-me a dançar, escolhia as minhas roupas, os meus sapatos e o penteado. Parecia não existir mais ninguém; só nós e a música. Subíamos as serras e caminhávamos na praia ao entardecer… fizemos coisas mágicas, que acredito que poucos casais tenham feito. Eu achava-o lindo, inteligente, adulto… amava-o mais do que a mim própria. Depois, começou a acabar a relação, voltávamos, ele acabava… sempre por motivos mínimos. Estivemos separados alguns anos, mas eu esperei sempre por ele. Quando nos reencontrámos, decidimos viver juntos. Fiquei tão feliz!!! Um mês depois, começou a bater-me sempre sem razão nenhuma para isso. Bater…era mais espancar. Chamava-me nomes e… e…
- Diz, Luana. Confia em mim. Chora se for preciso.
- Violava-me. Ai, era horrível! Ainda sinto nojo dele! Eu fiquei porque não tinha para onde ir e porque ele me ameaçava. Vivia com medo. Uma das vezes em que me violou fiquei grávida. Escondi até onde pude, mas depois quando se começou a notar ele bateu-me ainda mais, levou-me para um sítio que eu não conhecia e deixou-me lá, desmaiada pela hemorragia e pela força das dores. Acordei no hospital uns dias depois. O meu bebé tinha morrido… o meu bebé… morto, morto, morto!!! E os médicos explicaram-me que eu estava com uma grave infecção e traumatismos internos, e por isso … ele fez com que eu nunca mais possa ser mãe, nunca mais, o filho da puta! não posso! A única coisa que posso fazer como mulher é… percebes? E dessa forma apago-o de mim, mas nunca desaparece. Nunca.
Não me apercebera de que estava a chorar e a gritar completamente fora de mim. Ele abraçava-me e acariciava-me o cabelo. Voltei à realidade quando alguém – não sei quem, não fui ver – bateu na porta e perguntou se estava tudo bem.
- Pedro… desculpa. Vai-te embora. Quero ficar sozinha. Não posso olhar para ti neste momento. Por favor, não contes isto a ninguém, e não toques neste assunto comigo. Eu não devia ter dito nada.
- Luana, olha…
- Não, por favor, alguém nos ouviu. É melhor para ti não te dares com alguém como eu. Deixa-me só. Boa noite.
Ele saiu e eu agarrei na lâmina do costume e fiz um corte perfeito na coxa esquerda.
Para nunca esquecer.

quinta-feira, setembro 08, 2005

De novo em casa

Voltei ao meu lar, depois de acabadas as festas de Agosto.
Entro no prédio e digo boa tarde à D. Margarida, que me retribui com outro boa tarde e um sorriso amável. Entro no elevador, carrego no numero 6. Quando ele para, saio e olho para o patamar, como que à espera de ver alguém. Entro em casa, largo as malas no chão e encosto-me à porta como o mesmo sentimento de espera. Gostava naquele momento alguém me viesse bater à porta para me perguntar se estava tudo bem. Fico com vontade de chorar por estar tão só, mas resisto e volto a sair.
Entro no elevador e quando a porta se está a fechar, há uma voz que diz:
“- Espere...”
Travo a porta com o pé, essa voz diz:
“- Obrigado”
E é quando dou por mim, estou pela primeira vez cara a cara com o meu vizinho do lado. Já o tinha visto, espreitado, da minha janela algumas das vezes que ele estava em pleno acto com alguma das varias mulheres que lá vão a casa. Mas achei que, assim em pessoa, ele era um homem com muito charme.
Quando o elevador parou ele fez um gesto para a porta e disse:
“- Primeiro as senhoras.”
Fiquei muito vermelha e sai a correr, acho que a D. Margarida deve ter ficado assustada com a velocidade com que eu sai do prédio.
Estava a tremer, não por ele ter sido cavalheiro comigo, mas por tudo o que ele me fez relembrar.
Na minha cabeça podia rever toda a agitação sexual que eu tinha visto em casa dele. Sei que isto não é próprio para uma rapariga como eu. Mas eu não posso evitar ir para a janela da cozinha, espreitar, sempre que acho que ele está em casa com alguma mulher. Tenho de procurar ajuda... um padre, um psicólogo, alguém que me tire este vicio.

quarta-feira, setembro 07, 2005

Tardes doiradas

Estes dias de sol no fim de Agosto foram divinais. Deambulei pela cidade como se fosse uma velha mendiga, com o saco do pão debaixo do braço (não, não fui para o jardim dar pão aos patos…), e procurei mais bichanos. Custa-me trazê-los para casa, agora. Por um lado, por ver que o espaço para eles estarem à vontade começa a ser pouco… mas também porque o que se passou na aldeia me fez pensar que a vida, e a morte, nos pregam demasiadas partidas… era injusto para mim morrer e deixá-los aqui aprisionados, nas traseiras do ultimo andar.
Por isso tenho saído mais. De chapéu enfiado quase até às orelhas (só se vêm os meus caracóis cinzentos, a escapar por entre as abas), pego nos meus sacos e vou descendo e subindo esta cidade cinzenta. Por mais solarengo que esteja o dia, parece-me sempre que caminho rodeada de mortos-vivos, que passam, se encostam, se desviam… sempre sem palavras!
Esta semana tenho ido para um jardim especial. Fica a dois quarteirões daqui, e meia dúzia de árvores erguem-se dali ao céu, protegendo do sol e da chuva quatro mesas de pedra, um escorrega e um laguinho, onde se ouvem as rãs. O jardim é especial porque é vivo, costumo sentar-me lá para observar os velhotes da batota, e as duas ou três mães que ainda trazem cá os filhos, para brincar descansados.
Há dias vi lá a porteira, a dona Margarida. Estava com bom ar, pele escurecida das férias, e parecia estar muito bem, a lanchar com a pequena Joana. É tão raro ver os meus vizinhos fora do prédio, que quase me parece que as vidas deles se limitam àquelas quatro paredes… é bom saber que eles são reais!
Estava a chegar da minha volta diária, e a pensar que tinha de comprar mais latas de comida de gato para os meus pequenos, quando, ao entrar no elevador, dei de caras com a menina Inês do 13º.
Tenho uma dívida de gratidão com aquela moça… por isso, mal a cumprimentei, acrescentei logo “tem de vir lá atrás qualquer dia, para eu lhe poder oferecer um chá”. “Quando voltei das minhas férias passei lá” disse-me ela, “mas a professora não estava, fiquei preocupada”.
Expliquei-lhe das minhas voltas “obrigatórias” e acrescentei que os gatos tinham saudades. Prometeu-me que, depois de pousar as compras no apartamento, aparecia nas traseiras para o chá.
Despedimo-nos à saída do elevador. A menina Inês é boa rapariga, pensei com os meus botões, e dei por mim a pensar nos novos moradores que tinha visto nos últimos dias… pareciam-me fugidos de um destino qualquer, colados às sombras das escadas… Bem, já tinha assunto para o chá!


Deixem-me entrar, para pôr a água a ferver.

terça-feira, setembro 06, 2005

Johnny Walker - Gold Label

Entrava sozinho... merda, nada disto era o planeado. Como podia ela acreditar em mim, a perda de tudo que duas pessoas possuem, baseada na irresponsabilidade de uma... eu! Todos precisamos de perder para dar valor á vitória, assim como a morte para a vida.
Fechei a porta e fui recebido...
-Boa noite! É o senhor que se vai mudar pra cá?
Era óbvio que sim, que raio fazia eu ali de malas na mão?
-Sou sim, recebi permissão do condomínio ontem.
-Quer que o leve até à porta?
-Não obrigado... - respondi apático.
-Se precisar de alguma coisa... já sabe, é só perguntar pela Sr. Margarida! - tentava receber-me bem, mas... algo em mim quebrava a simpatia.
-Assim o farei se necessário. Boa noite. - dirigi-me ao elevador sozinho, sem me apresentar.
Por mim passa uma rapariga... diz-me, boa noite. Tento responder exactamente no mesmo tom... boa noite! Notei que carregava o doce mel da vida, com poucos meses, de certeza!!
Subi um pequeno lanço de escadas, carregava em mim dor e pecado. Carreguei no botão... pousei as malas e aguardei.
A luz do corredor apagou, mas chegavam as primeiras résteas de luz que atravessava o vidro do elevador... ouvi passos. Enquanto fechava a porta, alguém a agarrou.
-Com licença! - exclamou uma jovem de cabelos compridos, vistosa e atraente.
-Faça favor. Para que andar? Vou para o quinto...
-Então é meu vizinho! - disse, sorrindo.
-Prazer, o meu nome é Pedro.
-O meu é Luana.- estranho nome, pensei.
O silêncio era forte, a viagem até ao quinto andar era eterna.
-Chegamos! - exclamei. Sorriu.
Cedi passagem... que anjo. Peguei nas malas e procurava a porta... ah aqui está, 5º esquerdo! Enquanto abria a porta e empurrava as malas para dentro, ouvi do outro lado do corredor...
-Sei que não é da minha conta, mas... sente-se bem?
-Será que se nota assim tanto? - sorri.
-Precisa de companhia? Talvez queira beber um copo, afinal de contas sou sua vizinha...
Como é que ia recusar?, de que forma? Talvez ajude a curar a ferida, pensei. Estava ao abandono e ao meu lado caminhava comigo um espaço vazio. Talvez um copo e uma conversa preencham esse mesmo lugar, nem que por momentos. Estava sozinho... merda, merda, merda... e a culpa era minha.
-Depois de um banho, concerteza.- disse com algum receio.
Olhou para o relógio, fiz o mesmo.
-São 10 horas. Temos tempo... - sorriu e entrou.
Fiquei sozinho no corredor, a tentar repôr a respiração. Entrei e fechei a porta. Tomei banho, vesti-me e agarrei na garrafa que trouxe na mala.
Olhei-te... pensei se não seria mal interpretado, levar-te comigo. Oh, "...afinal de contas..." é minha "...vizinha...".
Saí, sem arrumar, rumo ao 5º de trás... bati. Ela abriu...

"A Carta" por Rita 3º dto


"João,
decidi abrir a janela que dava para a rua, mas desta vez só vi mesmo a rua...tu não estavas lá em baixo, trajado com a tuna, a cantares para mim...
Fiz café, só para sentir o cheiro e imaginar que eras tu que o estavas a fazer como ritual dos nossos serões de leitura...
Não aguento tratar de nós! Não consigo curar as feridas que me fizeste e que eu te fiz. Sou fraca! Não consigo dizer-to frente a frente; não nesta altura; e dizer tudo o que preciso, porque na realidade só quero desabafar...
Ao olhar para estas fotos recordo-me de tudo o que fomos, sinto saudade e talvez por isso trago em mim a certeza de que te adoro.
Guardo dentro de mim o resultado do nosso amor: esta criança vai ser a nossa felicidade, mas não a nossa vida em conjunto. Tenho que admitir que não podemos ficar juntos...tenho tanta pena de não conseguir sentir o "amo-te" que te digo!
Cheguei à conclusão de que somos bons amigos e nada mais.
Vou-me embora. Não para sempre, porque não quero que deixes de acompanhar a minha gravidez... sei que não me perdoarias se o fizesse!
sinto que deambulamos na vida um do outro, já não sei chorar, apetece-me sentir um dos teus abraços apertados, mas na verdade é só o abraço...
A carta, entreguei-a à D.Margarida, num acto ilógico de vingança, queria envergonhar-te, mas acho que quem tem vergonha sou eu...de te olhar nos olhos....e por isso é que me estas a ler e não a ouvir.
Estou a esconder-me...não sei o que fazer.
É tempo de enfrentar a verdade: nunca mais estaremos juntos.
Queria deixar-te algo que te mostrasse o quanto te respeito e que serás sempre "o meu João Trovador": a fotografia do nosso filho!

Rita"

segunda-feira, setembro 05, 2005

De volta das férias!

E cá estou eu de volta ao prédio após o merecido descanso!
E como sempre a D Margarida para nos receber com um sorriso
e um Bom dia como só ela sabe dar...
-entao menina Inês? correram bem as férias? - pergunta ela mal me
vê a entrar de mala as costas.
-muito bem D Margarida! e as suas? e a Joana esta boa?
-fui la abaixo ao Algarve passar 15 dias e para a Joana foi bom...mas
eu estava com medo de voltar ao passado mas nao foi assim tao mau.
- ainda bem! e as coisas aqui no predio?
- ando preocupada com a menina Rita, veio ter comigo e deixou-me
uma carta para o Joao e saiu sem dizer mais nada...
- esperemos que nao seja nada, passa o dia fechada em casa...havia
de ter uma ocupação, senao anda sempre a cismar...nao é nada bom
nem para ela nem para o bébé.
- pois nao, eu quando posso convido-a para tomarmos um chá juntas e
assim acho que ela sempre se anima um bocado
- vou subir D Margarida, vou tocar a campainha da professora para
saber como ela está, depois que voltou lá da terra, vinha muito abalada
por causa da tragédia com a sobrinha dela.
- nao a tenho visto estes dias...
- vou subir que ainda tenho de desfazer a mala e tratar da roupa...daqui
a 2 dias ja recomeço o trabalho!
- va lá entao. ate logo ou ate amanha
- ate amanha
.....
O elevador pára no 13º, saio e encaminho-me para a porta, rodo a chave
e abro a porta...lar doce lar, estou de volta!




Luana

Estes dois dias têm passado muito devagar. Devagar demais para o meu gosto. Quando vim para este prédio, a minha ideia era fazer novos amigos, não me meter em confusões e recomeçar a minha vida tentando construir algo de bom, desejando fazer as coisas de forma totalmente diferente. A minha primeira noite fora um desastre. Ir ao bar e meter-me com um homem desconhecido... descobrir que esse homem é afinal meu vizinho... ouvir murmurar que alguém lá estava e me viu... tudo isto fez com que me enfiasse em casa e não saísse, com medo de encarar as pessoas. Medo e vergonha.
Não me arrependo de ter feito sexo com aquele homem. Apenas de não ter sabido ser discreta, de não ter procurado saber quem ele era antes de me atirar de cabeça. Aquelas horas foram boas; ele sabe o que faz e sabe o que quer, e eu gosto de um homem assim, que me domine e se deixe dominar com intensidade. Disse-me que nunca ninguém lhe tinha feito um ... tão bom. Eu acredito nele. Não é o primeiro a dizer-mo. No entanto, já no meu quarto, não pude deixar de me sentir usada, um pedaço de carne sem sentimentos que não se pode respeitar porque não se respeita a si próprio. Mas eu sou mesmo assim... procuro sempre carinho, mas acabo a pedir violência e a sentir-me como uma prostituta reles. E sei que nunca ninguém me vai amar porque nenhum homem gosta de uma mulher como eu. No fundo, ninguém me conhece, ninguém sabe que eu só quero ser feliz e amada, e a culpa é minha porque passo uma imagem diferente. Tenho a certeza que o meu vizinho – nem lhe perguntei o nome! – vai pensar que eu sou ISSO e que as outras pessoas do prédio não vão querer falar comigo. E quem fez com que tudo isto começasse vai estar feliz como sempre, e nem sequer vai pensar na pessoa a quem destruiu.

Um ruído libertou-me dos meus pensamentos. O elevador parou no 3º andar e uma mulher entrou. Era bonita mas parecia muito cansada e triste. Reparei no volume do bebé no seu ventre. Ela acariciou a barriga e eu senti como que uma pontada no peito, uma ferida a sangrar eternamente.
- Bom dia – disse ela.
- Olá, bom dia.
Depois via-a olhar-me atentamente antes de perguntar:
- É a nossa nova vizinha, não é verdade?
- Sim, aluguei o 5º trás.
- E está a gostar?
- Ainda me estou a habituar, mas posso dizer que sim. Ainda não conheço ninguém...
- Ai não?
Tentei olhá-la nos olhos e sorrir.
- Bem, agora estou a conhecê-la a si. O meu nome é Luana, e o seu?
- Rita. Moro no 3º Esqº.
O elevador parou. Nós saímos.
- Gostei de a conhecer, Rita, e desejo felicidades para si e para o bebé que vem a caminho. Está muito bonita.
Ela sorriu mas pareceu-me ter ficado ainda mais triste.
- Obrigada, Luana. Olhe, se quiser, apareça para tomarmos um chá e nos conhecermos melhor.
- Ok. Eu apareço.
Ela saíu e eu fiquei entretida com a caixa do correio. Nenhuma carta. Estava a salvo. Cumprimentei a Dª Margarida e saí para o sol e o vento, em direcção à praia. O mar dir-me-ia o que fazer, e as suas palavras seriam anotadas no caderno que levava debaixo do braço.

domingo, setembro 04, 2005

Vou tirando fotocópias e vou pensando em ti.

Estava com a telefonia no on e bateu-me esta frase. Digo a telefonia no on porque era apenas isso que estava. Um som de fundo que nem sabia bem se era ou não era. Telefonia on e eu off.

Às vezes coisas tão simples dizem tanto... É isso mesmo, desde a minha última partida, sinto-me um pouco assim, a tirar fotocópias da minha vida, dia após dia, e a pensar em ti. As fotocópias não acrescentam nada. São fotocópias, como o próprio nome indica. Vou colocando ao meu alcance imagens de vários tempos. Tempos em que sair para o Mar era simplesmente sair para o mar. Uma coisa natural e sem qualquer tipo de mensagem escondida. Agora quando saio, saio em fuga. Saio quando perco as rédeas a este sentimento, saio quando te fazes maior do que eu em mim. Saio fugindo do medo da verdade suprema da tua existência.

É tão mais fácil embalar o marinheiro. O canto da Sereia não leva a nada. Leva só ao fim em si. É um chamamento enlouquecedor mas que se acaba no momento em que se realiza. É tão mais fácil ser o marinheiro. Ceder a esse som, forte e destruidor, seguí-lo, realizá-lo, destruí-lo. Viver e acabar em cada etapa.

Chamas por mim e eu gosto. Mas não me destróis depois. O teu grito atirado ao vento que me enfuna as velas, retira-lhes também a força para seguirem em frente. Chamas, vou! Gritas, vou! Cantas, vou... e chamas e gritas e encantas e quando vou não acaba. Perdura neste infinito que não conheço.

E que me assusta. Muito...

Diz-me, em que piso moras? Só te vejo sair rumo ao carro, cedo pela manhã!