sábado, novembro 26, 2005

Ernesto Saraiva volta a ouvir a voz de Laura

Eram três da tarde e ainda estava na cama afogado pelos meus cobertores. Ouvia as vozes dos vizinhos que desciam as escadas e o som do rádio que atravessava a parede. Este prédio tem paredes muito finas e mesmo que não o deseje, posso invadir a privacidade das outras pessoas sem sair de casa. Tenho acesso a informações inesgotáveis. Quando é que tomam um duche. Quando é que estão a ver televisão. As conversas ao telefone. As brigas. Os silêncios incómodos. E em retorno os outros têm acesso ao conhecimento dos meus hábitos domésticos. Que são demasiado enfadonhos para se fazerem notar no meio daqueles barulhos cheios de vida. Eram três da tarde e todos os que estávamos no prédio a essa hora ouvimos o meu Telefone a tocar. "É o telefone do Sr Ernesto!" Deviam pensar os meus vizinhos numa admiração generalizada. Raramente saía alguma novidade acústica como esta das minhas paredes para o resto do prédio. Levantei-me contra a minha vontade e atendi só porque o ruído aumentava exponencialmente a intensidade dolorosa das picadas no meu cérebro. Era um pormenor incontornável de uma ressaca já transformada num dos meus hábitos enfadonhos. E ultimamente bebia mais do que comia. E não era propriamente água. Atendi, e reconheci-a logo na primeira sílaba que foi expulsa da boca dela. Passado este tempo todo ela tinha-me ligado. E disse-me: "Olá Ernesto...Há quanto tempo não tinhas notícias minhas. Não é verdade? Soube que tinhas perdido o teu filho. Senti-me logo triste...miserável...pensei muito na tua mulher...e como é que ela vai? Espero que não tenha entrado noutra depressão...aliás foi por isso que me afastei de ti..e tu não o querias..eu lembro-me disso muito bem..desculpa se refiro isto..somos humanos e muitas vezes dizemos as coisas sem pensar...mas é normal que os sentimentos mudem..nem sei como é que te sentes agora..sabia o que sentias há 20 anos atrás quando bastava olhar para ti num relance...mas perdoa-me estar agora a retomar estas memórias tão velhas..mas sei que as memórias que se perdem em primeiro lugar são os sentimentos..eu lembro-me que me senti bem quando me apaixonei por ti, quando a minha filha nasceu, quando...mas já não tenho qualquer percepção da intensidade do sentimento em si...Quer dizer...acho que estou a mentir um pouco...Não posso negar que agora estou a sentir o meu estômago a andar um pouco às voltas devido ao nervosismo que sinto...ainda estás um pouco aqui dentro Ernesto...Mas já não podemos voltar atrás...foi muito tempo juntos...fomos muito felizes mas também fizemos sofrer outras pessoas...a nossa felicidade tinha um preço pesado...não chores..não faças isso...Só digo disparates...Ernesto ouve-me, liguei-te porque senti que precisavas mesmo de mim passado este tempo todo...tenho acompanhado a tua vida...sei de tudo...mesmo sem querer...não sei se te lembras mas temos conhecimentos em comum...e eu fui ouvindo o que me contavam através de um distanciamento cuidadosamente estudado...soube que a tua mulher fingia não saber das tuas amantes...fui acompanhando o crescimento do teu filho...Ah..E os nossos filhos conheceram-se na faculdade...não sei se sabes...a minha filha entrou este ano e ele tornou-se padrinho dela...que coincidência...ela está arrasada...com a morte do teu filho...os jovens nunca sabem lidar muito bem com essas coisas...pensam que a imortalidade é um dom que lhes pertence...ou então vivem numa inconsciência perante a mortalidade...mas isso não é o mais importante agora...quero saber como estás...fala comigo...desabafa comigo Ernesto...não quero ser só eu a falar..."

E comecei...e nunca tinha sido tão honesto com outra pessoa como fui sempre com ela...Laura...

1 comentário:

maresia disse...

estar afogado nos cobertores é algo de delicioso...