domingo, setembro 11, 2005

Ernesto Saraiva e o Espelho

Parte#1

Digo "Com licença, posso passar". E ela torna-se radiosa num rompante matinal. Ela é assim. Bela somente por palavras e sentenças reduzidas. "Com licença, deixe-me passar". E ela responde-me numa voz levianamente embaraçada. "Faz favor, sr Ernesto. Está à vontade". E é ela. É ela que tem conhecimento do meu nome. Ela num plural feminino e puro. E Mulher gutural e enorme no meu cérebro já preenchido com tantos pormenores dela mesma. E cada. Pequeno. Pormenor. Cada um. Tem a sua importância. Até o som. Da voz que responde. À minha própria. Ao meu toque. À minha entrada triunfal. Por dentro. Bem sei onde.

Parte#2

Um bar e uma mulher. E finalmente transportei para aqui uma mulher que partilha comigo as partes comuns deste mesmo edifício. A porta de entrada. As escadas. O elevador. Até a luz. Mas os nossos espaços intímos são só nossos. E ela que por horas também irrompeu por gemidos e prazer na minha própria cama. A Mulher indeterminável e abstracta tornou-se concreta. Foi uma delas. Uma das que me rodeiam por aqui. Mar sozinha e sofrida com um medo vísceral só por captar-me directamente nos meus olhos. Vitória inocente e jovem que me observa da janela transposta pelo olhar dela excitado como o fantasma de uma realidade minha já vivida há mais de trinta anos. Maresia inconstante e sonhadora que vagueia nas ondas onde nunca se perde e que me seduz com os seus cabelos feitos de algas verdes e enfeitados por brilhos resultantes das gotículas salgadas. E Luana que se tornou para mim mulher determinada e concreta e que se refugia na sensualidade tristeza de nome duplo enrolando-se dentro de si mesma.

Parte#3

Espero por ti. No elevador. E mar e eu jogamos. Jogamos jogos de crianças-adultos. De quem não quer largar o olhar um do outro. Não quero ceder. Não queres ceder. Ficamos assim os dois. E por momentos ainda penso que vou ganhar. E aplico um golpe baixo. Observo-a de alto a baixo com atitude devoradora. Mar fica embaraçada. Mas não cede. Na realidade não fico desgostoso por isso. Se fosse fácil não apreciaria o jogo. Não apreciaria desta forma as rosetas de cor escarlate que se formam nas feições dela. E a minha viagem está quase a terminar. E ninguém cede. E Mar não cede. É uma grande adversária. Saio. Ela fica sozinha. E eu com um gostinho de desafio na boca.

Parte#4

Quando era novo. Novo não. Quando era muito jovem. É melhor dizê-lo assim. Encontrei-me já com aquele olhar dela. Em mim. E apetecia-me nem sequer fazer o que normalmente faço. Encontro nela. Vitória. Aquilo que fui. Vejo-a e nem sequer sou capaz de convidá-la para um café na minha casa. "Boa tarde. Quer passar logo por lá?" Não ía funcionar. Ela ía ficar assustada. E não me servia de nada tentar acalmá-la dizendo-lhe "Tu és jovem. Eu também o fui. Fiquemos assim os dois." E há anos que procurava um olhar como o dela. Um olhar daqueles que se enrola aos nossos pés quanto menos esperamos. E consegue subir pelo corpo acima até chegar ao cérebro sem qualquer aviso. O tal que provoca calafrios. O dela faz isso. E quero mais. Desejo mais. Mas simultaneamente preferia ficar assim. Não há toque. Nem deve haver. Só ela. Assim mesmo ela própria. Só preciso disso na minha vida. E uma coisa é a vontade. Outra é a necessidade de concretização. Quero-a mesmo. Mas não posso fazer nada. Vitória pura não mo permite. Tem o olhar que a protege.

Parte#5

Maresia é já mulher. Mulher dela mesma. Ninguém a agarra. Ninguém a sente. Só ela o faz. Pelos outros. Por ela. Com a intensidade da sétima onda. A mais forte. Por fenómeno inexplicável. Maresia faz-me sentir. Maresia atrai-me. Como raramente fui atraído. Com fios de água que não se subtraiem à atmosfera mas que fogem inconscientes do corpo dela. Quero entrar em ti Maresia. E Maresia não promete. Mas o que vem dela diz-me que pode cumprir.

Parte#6

Luana. O meu amor acabou. E Desculpa. Mas já deves conhecer bem os homens. Os que são como eu. Desculpa por algo que já esperavas. Nada de expectativas creio bem entendê-lo. Porque nada se constrói perante acções que já possuo em mim completamente mecanizadas. São bases pouco sólidas Luana. E tu sabes que não precisas desculpar-me. Sabias que ía ser assim. Preenchi-te por momentos espaços permanentemente vazios. Os teus. Só tens a agradecer-me. Mas não venhas bater nunca à minha porta. Provavelmente não estarei cá.

Parte#7

Olho para o meu espelho. Revejo um homem velho.

Parte#8

O meu filho morreu. Acidente de automóvel. Morte rápida e indolor. Invejo-o. E lá se foram 26 anos de imbecilidade pelo cano. Ele sempre com aquela arrogância típica de um jovem. Rezava eu que ele chegasse a velho e pensasse "Sou igual a ele. Desprezo-me". Mas o filho da puta foi-se antes disso. Com aquela sensação de que era melhor do que eu. O idiota. Nunca o hei-de perdoar por isso.

Parte#9

Olho para o meu espelho. Revejo um homem quebrado.


1 comentário:

Drifter disse...

Bom texto! Belo retrato de um homem! Gostei da honestidade!