sexta-feira, setembro 09, 2005

Luana e Pedro: Copos no 5º andar

Nem sei o que me passou pela cabeça para convidar o novo vizinho para tomar um copo aqui em casa, mas ele parecia tão triste… Dei uma arrumadela rápida na sala e, quando estava a pensar se devia ou não ligar a aparelhagem, ele tocou à campainha.
Mandei-o entrar e sentar-se. Trazia consigo uma garrafa que devia ter custado um balúrdio. Servi-me do pretexto de ir preparar as bebidas para o observar através do espelho do bar. Era um homem alto e elegante, de pele levemente morena, lábios perfeitamente delineados, grandes olhos cinzentos e cabelo cor de azeviche, com um corte bem desenhado à frente e mais comprido atrás. Aparentava uns 30 anos, não mais, e vestia camisa branca e fato cinzento-escuro que reconheci ser de marca. Tão atraente… porque estará tão triste?
- Aqui tem a sua bebida, Pedro.
- Obrigado. Mora aqui há muito tempo?
- Não. Na verdade, mudei-me há cerca de uma semana e ainda não conheço toda a gente.
- Mora mesmo sozinha ou… os seus pais saíram?
- Moro sozinha. Não tenho família.
- Já somos dois – e ficou ainda mais triste.
Descobri que queria saber tudo sobre ele. Fomos bebendo e conversando. O álcool desinibia-me e permitia-me fazer perguntas, e ele parecia ansioso por desabafar. Contou-me que trabalha num dos ramos “altos” ligados à construção civil – o que explica a garrafa e o fato –, tem 34 anos e é casado mas encontra-se em fase de separação. A mulher não conseguira lidar com certas situações e abandonara-o na fase em que ele mais precisava dela.
- Mas teve de haver um motivo para isso, não acha, Pedro?
- Sim, claro que houve, e o único culpado fui eu.
- Traiu-a?
- Sim, mas não da maneira que pensa – Ele começou a falar cada vez mais depressa, como se cuspisse as palavras, como se cuspisse a sua própria alma – Eu traí a minha mulher quando abandonei os meus princípios, quando quebrei os votos de casamento, sabe, o amor, o respeito, o apoio, o estar presente na alegria e na tristeza, etc, etc. Falhei… falhei redondamente e só percebi quando bati no fundo do poço, porque quando ela esperava por mim de madrugada e quando eu chegava me implorava que parasse eu mentia; quando ela chorava e me implorava atenção eu escondia-me por trás do trabalho, porque… – começou a soluçar – foda-se... eu dei-lhe tudo, tudo! Dinheiro, casa, carro, piscina, empregada, mas… está a ver… eu não lhe dei dignidade! Que tipo de moral ou de vida digna pode ter e oferecer um homem que… que usa o álcool para se sentir melhor, para se sentir vivo… não pode, não… nunca! E ela disse-me tantas vezes e eu nunca a ouvi! Jogo, bebida… um círculo e eu no meio, e agora perdi. Perdi tudo, porque ela já não acredita que eu queria recomeçar. E agora acho que é impossível recomeçar. Mais vale ficar na merda de vez.
Abracei-o instintivamente. Achei que as lágrimas eram verdadeiras e não apenas fruto das bebidas. Quando dei por mim, tinha também eu deixado escapar duas lágrimas. Acendi um cigarro. Ele tinha-se recomposto e pedia-me desculpas
- porque eu não devia entrar assim na sua casa para falar sobre mim e ter este comportamento, Luana. É jovem e provavelmente pensa que sou um idiota e que estes problemas não existem.
- … Não existem? Ah, Pedro, era tão bom! Sabe, eu acho que a vida nos dá segundas oportunidades. Devemos levantar a cabeça e seguir em frente. Desistir é perder. Se tem consciência de que o álcool é um problema, pare de beber. Basta força de vontade. Venha cá!
Dei-lhe a mão e levei-o à janela do meu quarto, de onde se consegue a vista mais bonita. Apontei para o céu.
- Está a ver a Lua? O céu, as estrelas? Este é um pedaço do mundo, do qual você e eu fazemos parte. Pode estar na merda, mas se ainda pode desfrutar desta visão, então o mundo não se fechou para si. Viva-o. Sinta-o.
- É assim que encara a vida?
- Tento – respondi baixinho.
-Já amou alguém com tanta intensidade que lhe parecesse que a vida sem essa pessoa não fazia sentido?
Virei as costas – Eu não acredito no amor.
- Como é que uma rapariga nova e bonita não acredita no amor?
Ele tinha confiado em mim. Porque é que eu não havia de fazer o mesmo?
- Eu amei, Pedro. Ele foi o meu primeiro amor, o meu primeiro homem. Eu tinha 16 anos e ele 23. Mas acabou tudo.
- Porquê?
- Ele ensinou-me muitas coisas, fez-me crescer de muitas maneiras, mas nem todas boas. Levava-me a dançar, escolhia as minhas roupas, os meus sapatos e o penteado. Parecia não existir mais ninguém; só nós e a música. Subíamos as serras e caminhávamos na praia ao entardecer… fizemos coisas mágicas, que acredito que poucos casais tenham feito. Eu achava-o lindo, inteligente, adulto… amava-o mais do que a mim própria. Depois, começou a acabar a relação, voltávamos, ele acabava… sempre por motivos mínimos. Estivemos separados alguns anos, mas eu esperei sempre por ele. Quando nos reencontrámos, decidimos viver juntos. Fiquei tão feliz!!! Um mês depois, começou a bater-me sempre sem razão nenhuma para isso. Bater…era mais espancar. Chamava-me nomes e… e…
- Diz, Luana. Confia em mim. Chora se for preciso.
- Violava-me. Ai, era horrível! Ainda sinto nojo dele! Eu fiquei porque não tinha para onde ir e porque ele me ameaçava. Vivia com medo. Uma das vezes em que me violou fiquei grávida. Escondi até onde pude, mas depois quando se começou a notar ele bateu-me ainda mais, levou-me para um sítio que eu não conhecia e deixou-me lá, desmaiada pela hemorragia e pela força das dores. Acordei no hospital uns dias depois. O meu bebé tinha morrido… o meu bebé… morto, morto, morto!!! E os médicos explicaram-me que eu estava com uma grave infecção e traumatismos internos, e por isso … ele fez com que eu nunca mais possa ser mãe, nunca mais, o filho da puta! não posso! A única coisa que posso fazer como mulher é… percebes? E dessa forma apago-o de mim, mas nunca desaparece. Nunca.
Não me apercebera de que estava a chorar e a gritar completamente fora de mim. Ele abraçava-me e acariciava-me o cabelo. Voltei à realidade quando alguém – não sei quem, não fui ver – bateu na porta e perguntou se estava tudo bem.
- Pedro… desculpa. Vai-te embora. Quero ficar sozinha. Não posso olhar para ti neste momento. Por favor, não contes isto a ninguém, e não toques neste assunto comigo. Eu não devia ter dito nada.
- Luana, olha…
- Não, por favor, alguém nos ouviu. É melhor para ti não te dares com alguém como eu. Deixa-me só. Boa noite.
Ele saiu e eu agarrei na lâmina do costume e fiz um corte perfeito na coxa esquerda.
Para nunca esquecer.

6 comentários:

Drifter disse...

Elá!...

Sabes?... O que te impede de seres feliz é essa atitude de "Para nunca esquecer".

Nunca mais vem um psicólogo para este prédio?!? ;)

Beijos,
Mário

BlankPage disse...

Um psikólogo só vinha piorar a situação...se kalhar do que estamos a precisar é de terapia de grupo. :)

Ana João disse...

este texto foi muito intenso e por isso é que gostei... :)
muito bom. e vi sem dúvida nas tuas palvras o Perdo que imaginei... :)

Heavenlight disse...

Obrigada pelos vossos comentários! Estive um pouco de pé atrás ao escrever este texto pk axei q era "mórbido" ou triste em demasia, mas depois decidi-me. Afinal, e infelizmente, a sociedade é constituída também por muitas Luanas que, bem ou mal, se magoam e se culpam de algo que não deviam, ao mesmo tempo que tentam aprender a recomeçar do zero.
Ainda bem que gostaram.
Um beijinho grande para todos.

P:S: Se acharem que os textos são longos de mais ou aborrecidos, digam, por favor.

Nandita disse...

Estou abismada com as histórias destes dois... parabéns, Heavenlight :)

maresia disse...

Para nunca esquecer, tens toda a razão, vizinho de não sei que andar. E, na minha opinião, não é pela palavra "esquecer" em si, mas é a força negativa que ela transporta ao ser dita assim, ao ser marcada assim. Não existe esquecer, existe o ultrapassar, o aprender a viver com, o não parar por lembrar. Não existe o esquecer, existe o continuar a andar.

"Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar..." jp, certo?!