domingo, setembro 11, 2005

Mohini, a indiana do 10ºDireito

Ainda nem acredito que estou viva, depois de tudo o que passei. Devo a minha vida à Dra. Beatriz, médica sem fronteiras, que me ajudou a fugir da Índia!


Não sei bem quantos anos tenho, mas nos meus novos documentos diz que nasci a 25 de Março de 1985. 25 de Março foi o dia em que renasci. O dia em que a Dra. me encontrou. Dizem que a beleza é uma maldição. A minha mãe sempre disse isso. O meu nome, Mohini, é o nome da Deusa da Beleza (uma Deusa indiana). Nasci com a pele clara, uma qualidade muito apreciada no Oriente, os meus olhos são de um verde água e tenho o corpo esguio. Não sabia o que era a beleza, não sabia que a minha beleza podia acabar com a minha vida! Lembro-me muitas vezes do meu pai amaldiçoar a minha mãe, por me ter dado este nome. A minha mãe sempre me deu banho com leite de cocô, para manter a pele branca. Nunca me deixou apanhar sol. Passava os dias fechada em casa, fazendo tarefas domésticas simples, que não me estragassem a pele. As outras tarefas ficavam para as minhas irmãs. Sou de uma casta baixa, mas a minha beleza, dizia a minha mãe, ia-me proporcionar um casamento com um homem de uma casta superior e eu ia ser muito feliz e ter tudo o que nem ela nem as minhas irmãs iam alguma vez ter! A minha mãe sempre me escondeu, com medo que algum homem me roubasse. Nunca olhei ninguém nos olhos, porque a minha mãe me dizia que os meus olhos enfeitiçavam os homens. Comecei a usar véu antes mesmo da puberdade para tapar os meus longos cabelos negros. Nunca me queixei de nada, sempre fui submissa. Na minha terra as raparigas têm que obedecer aos pais. Desobedecer mancha o nome da família!Há pouco mais de um ano, houve uma epidemia na minha aldeia e todas as minhas irmãs adoeceram. Foi a primeira vez que saí de casa! O meu irmão mais velho, acompanhou-me ao mercado da aldeia para comprar farinha e açúcar. A minha curiosidade era tanta que não resisti a olhar à minha volta e ver o mundo! Pensei que fosse tudo como a minha casa, mas estava enganada! Olhava curiosa para tudo e num momento, os meus olhos recairam nos olhos de um rapaz. Baixei institivamente os olhos, mas aqueles segundos foram suficientes. Apaixonei-me, era o rapaz mais bonito que já vira!!! Lakshman era o seu nome. Voltei para casa, pensava nele dia e noite. As minhas irmãs melhoraram e nunca mais voltei a sair de casa. Mas ele descobriu a minha casa, e atirava-me pedrinhas para a janela, para falar com ele. Sentia qualquer coisa de diferente em mim, não queria recusar a presença dele! Não sabia nada de amor, não sabia nada de nada! Ele disse-me que queria casar comigo! Pediu-me para sair de casa e encontrar-me com ele na casa abandonada que havia atrás da minha. Consegui sair e fui ter com ele. Ele começou a tocar-me, e quando dei por mim, senti uma dor aguda e começo a ver sangue molhar-me o sari. Fujo a correr para casa, envergonhada, sem saber o que se tinha passado. O tempo passa, e a menstruação deixa de aparecer, não liguei, porque não sabia nada. Mas a minha mãe percebeu o que tinha acontecido. Passou-se tudo tão rápido! As minhas irmãs saíram todas para o mercado com a minha mãe. Ficou apenas o meu pai e o meu irmão. Vejo o meu irmão aproximar-se com um bidão de gasolina e perguntei-lhe docilmente se precisava de ajuda. Nesse mesmo instante, regou-me com aquele líquido frio. Comecei a ficar com medo e gritei pela minha mãe e pelas minhas irmãs. O meu pai acendeu um fósforo e atirou-o para os meus pés. Gritei e consegui fugir das chamas. Tinha os pés em fogo mas consegui correr. Corri até não aguentar mais.


Acordei num hospital. Tinha uma senhora de calças debruçada sobre mim. Fiquei aflita! Ela ia morrer!! Uma mulher não pode usar calças!!! Iam querer matá-la!! Ela acalmou-me e falou-me docemente, chamava-se Beatriz. Encontrara-me numa vala à beira da estrada. Contou-me que tinha perdido o meu bebé. Eu nem sabia que estava grávida! Nunca soube essas coisas! Passaram-se meses até que ela conseguisse documentos para mim e licença para ir com ela para Portugal. Não conseguia imaginar onde seria tal aldeia! Nunca tinha ouvido falar! Mas nesses meses ela falou-me de Portugal e do mundo, da cultura ocidental, ensinou-me português, ensinou-me a ler e escrever, falou-me dos costumes, explicou-me o que me tinha acontecido e ao bebé, falou-me de tantas coisas novas que eu achava que ela estava louca! Mas ao fim de algum tempo a minha aldeia parecia-me um pesadelo passado. Cheguei a Portugal e fui viver em casa da Dra., onde pude adaptar-me a este país tão diferente do meu. Já cá estou há muitos meses e já não imagino a minha vida de outro modo. Não consigo usar calças e ainda me é estranho andar sem véu, porque os homens e as mulheres olham-me nos olhos! Já fui abordada devido à minha beleza inusitada, mas é algo a que me estou a habituar.A Dra. conseguiu arranjar-me um subsidio e ando à procura de emprego. É estranho que as mulheres trabalhem ao pé dos homens. Mas também me estou a habituar a isso. Aqui as mulheres são iguais aos homens. Aqui não queimam mulheres por estarem grávidas, aqui não há mortes silenciosas! Aqui as mulheres estudam e eu quero estudar!A Dra. encontrou este apartamento para mim e agora moro no 10º direito, nunca pensei que o Homem conseguisse construir tão alto. Aqui sinto-me próxima dos deuses. Espero conseguir levar a minha vida aqui! Estou cada vez mais habituada às maneiras abertas das pessoas ocidentais.A Dra. disse-me que o prédio era como uma grande casa de família, espero encontrar aqui amigos e ajuda nesta adaptação diária.Quando cheguei estava um rapaz (talvez da minha idade) a entrar, pegou nas minhas malas e ajudou-me, mora no mesmo andar que eu. Assenti timidamente e sorri, com os olhos baixos. Ele sorriu com o mesmo sorriso de Lakshman. Acho que a minha mãe tem razão, a beleza é uma maldição!

4 comentários:

Drifter disse...

Bem-vinda, Mohini!

Sim, fiquei surpreendido pela chegada de uma rapariga para o meu andar. Ainda mais surpreendido fiquei por constatar que a minha vizinha do lado era portadora de uma beleza diferente de tudo aquilo que tinha visto até agora. Sem dúvida que fiquei fascinado e com curiosidade...

Beijos,
Mário

BlankPage disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
BlankPage disse...

Bem vinda mohini! A tua história apesar de triste vem trazer mais cor para o nosso prédio..

maresia disse...

(...) aqui não há mortes silenciosas! (...) Aqui sinto-me próxima dos deuses.

Meu Deus, e o Mar bem sabe como sou agnóstica. Quanta ingenuidade, quanta lição irás aprender à custa de descobrir os espinhos da rosa...

Esta ainda-criança assusta-me. Não ela, mas o que ela não sabe. As suas ilusões sobre o mundo ocidental, o mundo das igualdades, das múltiplas oportunidades.

Não sei bem o que é pior, se viver protegida da vida onde a vida é castradora, se à solta na vida, onde a vida é traiçoeira.

Mohini está à solta, finalmente, à solta de uma série de preconceitos, injustiças, maldades... só lhe desejo que não seja engolida pela soltura injusta deste mundo onde nos comemos uns aos outros.

Ofuscada pela beleza que vislumbrei durante segundos, ao vê-la entrar aqui no prédio, pensei para mim "Não és de cá e pareces perdida. Estarás preparada? Terás uma mão que te guie na descoberta? Ou irás acabar nalguma casa de alterne, subjugada por outros que, talvez, ainda sejam piores do que os que (não)conheceste lá donde estejas a chegar? É que lá, movem-vos tradições, aqui, movem-nos interesses"