domingo, maio 15, 2005

Quem me toma conta dos gatos? (Pedido desesperado de uma velha com saudades...)

Maldito seja este dia! Tudo piorou desde a notícia da morte do senhor José. Lá fora chove demasiado para me aventurar pelas ruas. Dentro de casa, estou presa pelas dores da minha perna. Só espero que a chuva passe depressa, há tanto a fazer lá fora, tanto que ver…

Estes dias têm sido peculiares. Do alto das grandes escadas, tenho visto o corrupio das mudanças dos novos vizinhos. Alguns parecem-me morar sozinhos, e na sua juventude parecem-me tão velhos, tão velhos! Noutros apartamentos, são famílias inteiras, pais e mães atarefados, filhos falsamente aborrecidos (ansiosos, como todos os jovens, por conhecer mais e mais lugares…), cães e gatos que passarão a ser parte da mobília, como tudo aqui.
Depois, o aparecimento dos inspectores, por aí a rondar, a investigar na portaria… escapei aos interrogatórios, por estar aqui no fim do prédio, mas não teria muito que lhes dizer: que tenho pena, só!

Nestes dias de clausura involuntária, tenho pensado muito no que deixei para trás. São caprichos melancólicos de uma velhota sem ocupação!
Tenho-me lembrado da minha casinha. Lá no Minho, vivia numa casa muito pequena, casa de lavrador. A minha família era tudo menos abastada, mas eu, como filha mais nova, acabei por ter o mimo de todos, e o dinheiro para me tornar professora.
Além de mim, só o meu irmão João conseguiu estudar. É padre, numa aldeia meio perdida mais a interior. Mas que não se pense que o resto de meus 7 irmãos são analfabetos! Todos foram à escola, dois anos, três anos, o que foi preciso para alinhavarem as primeiras letras, saberem as tabuadas, cantarem os rios e os caminhos-de-ferro. Como sinto falta deles!
São pessoas de uma sabedoria tão grande… sinto-me muito pequena perto deles. De que me valem as formas verbais, as contas de dividir, os reis e os presidentes… se eles têm a sabedoria da terra, do calor que faz germinar as sementes, da força do sol e do vento sobre os seus corpos… nunca fui tão feliz como lá, vendo crescer as crianças e as culturas, numa comunhão só conhecida por quem dela partilhe.
Os meus dias de professora eram duros. Compreendia-se, naquele tempo, que o ensino, sendo para todos, só era de qualidade para os que tinham posses… e eu desdobrava-me em mil para dar àquelas crianças mais do que o a-b-c, para lhes ensinar o amor, a partilha, motivá-las a descobrir. Sabia que muitas delas só iam à escola o mínimo de tempo possível, e queria aproveitar esse tempo para as fazer crescer ao máximo.
Eram meninos e meninas tão especiais! Gosto de voltar à aldeia, algumas vezes por ano, para ver o que eles se tornaram. São parte de mim, e orgulho-me dos seus feitos (o José, filho do Chico, conseguiu seguir estudos, a trabalhar ao mesmo tempo, e arranjou um emprego nas Finanças lá da cidade!).

Este saudosismo desajeitado tem motivos. Para a semana, vou de novo lá acima. Esperam-me os meus irmãos vivos, quatro ainda, para matar as saudades desta meia-dúzia de meses sem os ver. O João também se junta a nós, o motivo é nobre!
Casa uma das minhas sobrinhas-netas, uma rapariga doce como a sua avó… sim, devo confessá-lo, é a minha sobrinha-neta preferida. Independente, sim, cheia de força, mas ao mesmo tempo com o mesmo traço de doçura nos olhos que tem sua avó… minha segunda mãe.
Vai ser uma festa grande, juntar toda a família, aproveitar para rever os vizinhos e os amigos que deixei.
Mas cá em casa, fica-me um problema. Os meus inquilinos de quatro patas já pressentem a minha ausência. Ficam desconfiados quando saio a porta (imaginem, só para dar dois dedos de conversa aos vizinhos, lá na entrada) e raramente vêm à sala… acho que estão zangados por eu ir à terra.
Mas a viagem é curta, meus pequenos! E vocês ficam em boas mãos… tenho de pedir a uma daquelas jovens simpáticas que se mudaram para cá, para virem dar o jantar aos meus lindos… ai, mais um trabalho num dia em que não o posso fazer! Além do mais com a confusão que se criou com a morte do senhor porteiro… coitado, tão bom homem, e havia de acabar assim… ai ai, as confusões que acontecem nesta vida!
Vou até à marquise, ver como é que eles se estão a portar!

1 comentário:

Nandita disse...

Muito obrigada, jovem.
Deixo-lhe a chave debaixo do tapete, a partir da próxima quarta-feira.
Eles não são esquisitos, as latinhas estão na marquise, e a torneira da água também.
Vai ver que eles lhe ficam tão agradecidos quanto eu.

Nandita