quinta-feira, maio 05, 2005

A voz da cave

O meu nome é João Escuro, e vivo na cave. Consegui convencer o porteiro a ficar com a cave depois de muito insistir, já que assim posso evitar cruzar-me com os outros inquilinos.
Tenho medo das pessoas, medo dos seus passos, medo das suas vozes das suas mãos das suas sombras, não consigo suportar a presença de alguém que não seja apenas eu. Nem sempre fui assim, a vida fez-me assim, o mundo fez-me assim. Amei uma vez...
Trabalho à noite e de dia não consigo dormir com medo de que as paredes húmidas e negras nos cantos se fechem em mim como braços. O meu trabalho? Esse dá-me prazer, acalma-me os nervos e é o único que me permite estar com pessoas...mortas. Trabalho na morgue, preparo os cadáveres para as autopsias. Espalho todas as minhas palavras pelos corpos frios. Por vezes sinto que me dizem qualquer coisa, e tento escutá-los, mas é apenas o eco da minha voz que se espalha entre eles, nus, frios e hirtos, todos com a mesma expressão de silêncio. Por vezes custa separar-me deles, são os únicos amigos que conheço, e quando vão embora lamento a sua partida. Não teimam em, dar-me conselhos, não me fazem perguntas idiotas nem sorriem por coisas idiotas ou cospem para o chão. São bons ouvintes e sabem guardar um segredo.
Tocam-me à porta, vou fingir que não estou...

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá João... vai ali a casa da Rita e ficas a saber quem eu sou, deixei um recado para ela, que serve para ti, tb...

Já agora muito prazer ;-)

Abraço e bom fim de semana

Catarina Santiago Costa disse...

Esta personagem pareceu-me muito interessante: lembrou-me de mim própria (embora nunca tenha trabalhado em autópsias) em dada altura da minha existência.
Beijos

Drifter disse...

Muito interessante! Se trabalhas com cadáveres, deves saber muito de anatomia humana. Acho que já sei a que porta bater quando estiver com dúvidas no estudo! :)

Até sempre!