sábado, agosto 06, 2005

Estadia forçada

Voltei a casa! Depois de dois meses que nunca pensaria viver, regresso às traseiras do último andar, onde me esperam os meus amores.
Sentia-me culpada por os ter deixado a dar trabalho à menina Inês do 13º, mas não houve outra maneira. Agora que cheguei, vejo que ela os tratou bem, as tigelas ainda têm comida, a água deve ter sido mudada já hoje… os trabalhos que eu lhe dei! Quando descer para a minha voltinha tenho de passar no 13º, para agradecer, além de prestar contas pelos sacos de comida extra que foram necessários. Ai velhota, o trabalho que os teus trabalhos dão!
Pois a minha estadia na província foi mais longa do que eu previa… Cheguei para um casamento e acabei num funeral colectivo, uma espécie de ritual macabro que envolveu toda a aldeia.

A minha sobrinha neta ia casar! Sim, a dos olhos doces… Maria de seu nome. Nunca tinha conhecido o seu futuro marido, mas tenho pena… se o tivesse visto antes talvez conseguisse adivinhar nos seus olhos toda a loucura que ele guardava.
Minha sobrinha era bonita! Bela como a avó, não me canso de o dizer. Antes desse namorado, desse louco, tinha sido cobiçada por quase todos os rapazes da sua idade… Na aldeia mantêm-se implicitamente estes rituais, esta procura de um bom par. E ela era encantadora. Despachada, activa, não deixava ninguém sem resposta, mas sempre com um sorriso a desenhar-se nos lábios! Acho que deixava aqueles rapazes presos ao seu olhar…
Ora este louco com quem ela ia casar, pobrezinha, foi o único rapaz que lhe despertou a atenção. Disse-me o meu irmão Manuel que o rapaz tinha vindo, anos antes, da aldeia vizinha, com os seus modos reservados, como quem escondia qualquer mistério na alma… acho que foi isso que a encantou! Pobre Maria… que abismos se escondiam no mistério daquela alma!
Faltavam poucos dias para a festa quando cheguei, já à noitinha. Não a vi, tinha ido de novo a casa da costureira, para a prova final do vestido. Sei apenas que dormi… e acordei, na manhã seguinte, dentro de um pesadelo.
O louco saíra nessa noite, para o cafezinho do centro… Talvez contente com o grande passo que ia dar, acabou por beber demais, ele e os outros rapazolas que se lhe juntaram, para festejar! No meio de todo o álcool, acabou por ouvir demais… todos os outros comentavam a beleza da minha sobrinha-neta… os seus “atributos”, o quão feliz ele ia ser ao lado dela.
Até que um deles se lembrou de falar do Jorge… lembro-me dele, gaiato pequeno, a correr pelo jardim com a nossa Maria. Eram amigos desde que nasceram, unidos por pactos tão fortes como qualquer amor. Desde que Maria tinha começado a namorar, o contacto entre eles tinha-se tornado menos constante, mas mantinha-se a amizade. Mas ali, no meio das vozes alteradas, insinuaram-se as piores coisas sobre os dois… tanta proximidade, tanta amizade, eram de desconfiar! E avisavam o louco sobre isso, entre grandes palmadas nas costas e olhadelas ao filme pornográfico que passava na televisão.
Contaram-me que ele só acalmou quando soube ao certo onde morava o tal Jorge… depois, limitou-se a pagar a despesa e a sair, sozinho pelo largo fora.
Na manhã seguinte, minha segunda mãe encontrou-os, aos três. Em três tiros, três vidas destruídas… e um mundo de desespero e consternação para quem só queria o melhor para eles.
Foi assim que me vi estes meses na aldeia. A minha irmã e a filha entraram em estado de choque, acompanhei-as todos os dias à aldeiazinha branca dos mortos, visitar aquelas almas, vítimas da loucura de alguém que não soube medir as suas acções.
Minha irmã continua a chorar, baixinho, baixinho, quando toca mais uma vez em qualquer das pequenas coisas que Maria lhe oferecia… Deixei-os a meio do seu luto, e vim viver o meu na solidão acompanhada da minha casa.
Vá, bichanos… vamos abrir as janelas. Preciso de ver o sol, ainda vai alto, ainda me pode aquecer o rosto, secar as lágrimas que teimam em correr.
Preciso de me ocupar, e esquecer…

2 comentários:

Laura Antunes disse...

Gostei do que li, muito sentido e forte. Abraço Laura

almadepoeta disse...

O texto é belíssimo. A história trágica.....gostei e cá voltarei...beijo